A ponta macia do batom, quando quebra dentro da bolsa, é uma pasta vermelha invencível, a tingir e a grudar as moedas, zíperes, bilhetes, a se instalar perpetuamente sob as unhas que tateiam desavisadas a lamentável massa sangrenta. O blush quando cai ao chão explode em poeira rosa, brilho eterno no rejunte dos tacos do quarto, por muitos dias os calçados a deixar pegadas de uma areia exótica avermelhada com purpurinas.
O frasco de perfume quando cai espalha seus estilhaços aromáticos feito espinhos de rosas molhadas, o vidro por dias a furar os pés que passam ainda descalços da cama, o cheiro que era bom agora a tontear, quase doer detrás dos olhos. A base tom-de-pele quando vaza anula de bege todos os traços, panos, marcas. Apaga os desenhos, desbota e endurece as estampas.
O rímel quando borra escorre em lágrimas pretas, ou cinza, abre sulcos negros no rosto que pioram quando se passa água, apenas expandem feito córregos lamacentos escancarando em vexame o que era pra ser uma dor discreta, uma emoção quase íntima. O brinco quando engancha num abraço, num beijo, numa briga, salta queimando quente na orelha, rasgando o furo já tão largo de argolas passadas, e vai tilintar no assoalho até debaixo do sofá, até onde não se encontre nunca mais, quem sabe até com gotas de sangue.
Essas nossas delicadezas destacando os encantos, modulando cores, contornando olhares, essas nossas delicadezas a quebrar, romper em manchas indeléveis, em barbaridades incorrigíveis. Nossas delicadezas a revelar nossas mais entranhadas forças, a maquiar de frágil nossa indisfarçável coragem.
E ainda que nos arranquem todas essas cores da nossa inestimável arte diária, ainda que nos fechem, enclausurem, empobreçam, amontoem no acinzentado opaco do avesso dos espelhos, não há nada que apague o que fizemos vermelho, nem recolha nossos brilhos, cheiros, nada que amacie nossos estilhaços. Não há nada que esconda os caminhos escuros do nosso choro sempre chumbo.
Um comentário:
Sempre sempre um prazer te ler.
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