sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Árido I


Vôo por sobre a cordilheira e cordilheira me evoca um monte de coisa. Cordial, olheira, alheia. CORDA.
Ela que se estica gigante, infinita, e fico pensando que é a pele de uma senhora deitada, uma pele manchada, enrugada, inerte. A cordilheira é uma senhora virgem e serena, e os topos de neve seus cabelos brancos, e por isso ela embora virgem muito mais sábia, muito mais vivida que eu.
Debruço os olhos por seus sulcos, cavidades, quem sabe rios, ou mesmo estradas, e ainda assim ela plácida, intocada por tantos sobrevôos. Invejo a cordilheira por sua serenidade mas não por sua solidão, que é também a minha.
Há treze anos a espiei no mesmo sobrevôo e talvez nos meus olhos a mesma dor, essa solidão genética, costurada em mim no berço. Essa solidão que enruga, envelhece, mas não cresce, não se consome nem cura. Há treze anos sobrevoei a cordilheira e há 26 me sinto apenas sobrevoada por toda a gente. 
Ela me envolve labirinticamente nos seus vincos distantes e me cospe do outro lado atarantada e seca. 
Invejo a cordilheira na sua aridez -- eu sempre tão fluida, a derreter nos beijos, abraços, a escoar erodindo os caminhos que não me abrem. Mas não a invejo na sua solidão, que compartilhamos hoje com a lua e o sol presentes ao mesmo tempo -- efêmera união típica de teimosia minha. 
Há treze anos eu sobrevoei e odiei a cordilheira. Odiei por espelhar minha solidão, meu excesso de pele intocada, minha virginidade que eu comparava às intermináveis tardes de férias assistindo sozinha ao pica-pau -- outro solitário. Odiei por se deixar sobrevoar assim, ao longe, por tantos anos. 
E hoje embora eu chore por sobre essa velha solitária e imensa -- quanta ternura na aeromoça que me trouxe subitamente um copinho com água --, não culpo a cordilheira, talvez já não culpe ninguém, nem a mim; choro de olhá-la feito espelho. 
Penso em afagá-la, alisá-la com força e entrega, até que tocada a pele se estique na sua imensa cama, até que se vá alinhando plana, planície, deserto, até que se deixem anular seus desenhos complexos, até que já não seja cordilheira. 
E então entendo sua sabedoria e a invejo mais uma vez, e decido eu mesma resplandecer ampla e montanhesca, para que nenhuma companhia ou afago me planifique, trivialize, para que eu mantenha sempre meus desenhos complexos de curvas, sulcos e estradas, e saiba admirar -- sem doer -- a distância segura a que me sobrevoam.    

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MELT


MELT
O que há na minha matéria que derrete
--e lá fora o receio de tudo que derrete.
Massa quente que ao toque logo deforma
Envolve, encobre, extravasa
O que há em mim que derrete e não tem controle
Não cabe no aperto
No abraço
Nos dedos
O que há em mim que transborda

Assusta
Inunda
Corrompe
O que há em mim de vertigem que não me debruçam
--eu tão apoio, tão braços, tão bustos e não me debruçam.
O que há em mim que derrete e assusta
Areia movediça que se adivinha em alardes, gargalhadas, danças.
O que há em mim que derrete e ninguém segura
Ninguém contém, ninguém nem bebe nem guarda,
Não me nadam,
não se afundam, não se banham
O que há em mim do inglês MELT
E qualquer coisa de mel a amolecer o corpo
A enjoar as línguas
O que há em mim de insuportavelmente doce e denso
Que não esfria, não congela, nem desgruda
O que há em mim que a cada golpe
Em vez de secar, engrossar, recolher,
só enternece
Melting away

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Casa do Amor II




Você, que aguarda em algum lugar aí fora dessa minha casa que não tem campainha: só mais um minuto e eu abro. Pode sentar na sarjeta, na árvore, pode voltar depois da noite, da dança, pode esperar suado, ou dormindo, ou chorando. Esperar só mais um pouco que já abro.
Recolher do chão os cacos, os pedaços de vasos, as flores, estilhaços de espelho que acumularam: parece que fechei os olhos e pela casa passou um furacão quente e impossivelmente lento, é melhor você esperar só mais um pouco que ainda tem restos de comida na cozinha. Jogar fora o que sobrou do suco, da fruta, da sopa, marcas de chocolate pelas pias, dedos melados tingindo de açúcar os armários, azulejos – quantas vezes será que essas mãos espalmadas com fúria dulcíssima nessas tantas paredes, parece que nunca vou terminar de limpar.
Apagar das paredes também os recados, desenhos, quadros, recolher as fotografias e guardar quem sabe num fantástico sótão de sublimação e poeira. Ainda tem convidados na sala, que amigos são esses que foram ficando e nem são os meus, será que são pessoas esses vultos caídos nos sofás, será que são anjos delinquentes despencados de um paraíso que é preciso lavar completamente daqui.
Lavar – aguarde mais um pouco que ainda é preciso lavar – as roupas, costurar os rasgos, puxões, afagos, é preciso remendar o vestido que foi dilacerado, tirar as marcas, o cheiro. É preciso que já não haja perfume, nem suor, nem lembrança.
É preciso que eu me deite no chão e recolha debaixo da cama o que restou dos tantos monstros – que monstros são esses que deixaram aqui que não são os meus --, apanhar o que sobrou dos sonhos. Que sonhos eram esses que despencavam da cama em rochas de erosão e dor. É preciso que eu afaste janela afora os fantasmas que entraram com o vento, não é de bom tom uma casa assim assombrada.
É preciso acalmar os cachorros que latem no portão talvez sentindo a sua presença aí fora, ou quem sabe alguma ausência aqui dentro. É preciso estender nos varais sob o sol ardente a minha camisola, até que ela ferva, endureça, recomece, até que ela esqueça.
Mas é preciso acima de tudo que você traga lençóis novos, porque é impossível aguentar o peso dos meus, não se pode lavar mancha assim viciada. Arrancar da cama e dobrar carinhosamente pelas pontas, trocar as fronhas, e enterrar tudo no jardim feito um pano morto, sagrado, transcendental, enterrar como se enterra o que já não pode viver mas não pode apodrecer a olhos vistos, sem dignidade, decoro, adoração.
E quando enfim eu me erguer dessa incriticável faxina, quando tirar meus joelhos da terra velando esses lençóis doídos, vou abrir a porta e, quem sabe, até sorrir. Pode entrar, Meu Novo Amor.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Gata no cio



Já todas as luzes no escuro e as portas fechadas e o barulho hesitante do teclado do meu computador na única sala acesa dentre tantos corredores. O vazio, as sombras, as reminiscências das tantas gentes que passaram durante o dia, os choros, abraços, o tilintar das algemas, chinelos, crianças: tudo no silêncio jurídico da meia noite dentro do fórum criminal.

E é nesse lugar, nessa noite lenta, que ela sai das suas trevas no jardim central – esse impossível antro de vida selvagem na estufa de ar condicionado e sol fosforescente em mil lustres de licitação – para uivar o lamento agudo de mais um cio solitário. É aqui que ela chora o seu cio bandido, clandestino, seu cio de ferro.
A gata sozinha entre moitas quase sintéticas e passarelas negras por onde já não vê doutores, senhores, louvores, nem mesmo já não vê desgraças, só a sua fúria uterina a lhe contorcer os ovários, a pulsar no ventre esse fruto que não vinga, esse despontar de fertilidade desaproveitada. A gata malhada a gritar, a espalhar pelo eco a sua força, a sua dor de ausência, a embaralhar entre as letras do meu computador o chamado doído do seu desejo. Uma pausa minha a cada frase, o meu grito calado em respeito a esse miado louco desatendido porque não há animal que alcance a fêmea nessa impenetrável clausura.

Nesse lugar cheio de prisão vem ela escancarar sua escravidão maior, sua ânsia insaciável dentro desse grande bloco de concreto. A gata no seu lamento cada vez mais alto, insuportável desespero que nenhum afago abranda, nenhum copo de leite.

A cada berro fica em mim a certeza de uma energia linda, fulgurosa, única, que ela dissipa em
tremores de um cio desencantado de cárcere e solidão. Apago a última luz e deixo a gata sozinha com o eco insistente de todo o seu amor.
Lá fora uma súbita lua dourada num calor de inferno, que me segue até o carro, até a casa, até a cama.