terça-feira, 19 de janeiro de 2010
Para que as mocinhas e os gatos possam amar completamente
Nós precisamos de você. Precisamos que abra os olhos e diga sorrindo que viveu festas incríveis de fim de ano num sonho profundo e confuso de contusões e plaquetas mas que tudo foi regenerando feito os fígados heróicos dos nossos grandes mitos. É necessário que você levanta-te-e-anda porque não podemos conviver com essa lenta revelação do retrato da nossa vulnerabilidade, surgindo aos poucos num quarto avermelhado.
É preciso que você resista porque nós, nós estamos acostumados a ver nossos homens morrerem de fome, de acidente, de tragédia, de deus, diabo, bomba, de amor e de ódio. Bastava que houvesse um motivo, uma razão e desligaríamos nossas televisões quase satisfeitos, a repetir incredulidadezinhas cansadas sobre a barbárie e o caos. Saberíamos que há estrupícios que golpeiam inocentes porque são negros, homossexuais, ou porque têm o dinheiro cobiçado num assalto malsucedido, ou porque aconteceu qualquer uma das nossas tantas razões que nos preenchem da resignação e automação dos lamentos de elevador.
Mas você não, é preciso que tudo isso passe ou que alguém descubra a razão dos golpes repentinos, um motivo que seja, quem sabe você estivesse lendo justamente o livro que o homem queria ver. É preciso um motivo ou uma salvação antes que você escancare diante de nós o grande paradigma dessa dolorida efemeridade.
Desde que você desmaiou assim fundo, dói sentir a preparação inútil dos dias. Cada segundo de estudo, trânsito, cada partícula de plano para um pseudofuturo parece ingênua e tristemente ridícula porque um dia qualquer desses tudo acaba em três golpes gratuitos, e é tão angustiante ficar aqui perdendo tempo nesse buraco quente que é o metrô ou nessas salas fedidas onde a gente tem de trabalhar.
É preciso que você acorde e conte que isso tudo é uma brincadeira, porque não é possível que as pessoas, que tudo isso que elas constroem dentro de si, que acabe tudo assim como nos videogames, mas até os bonecos do videogame têm explicação para o gameover. E o seu silêncio por enquanto só me dá vontade de largar tudo, qualquer coisa que se assemelhe a um planejamento. Largar o trabalho, o estudo, e ficar todo o tempo que ainda me pode restar fazendo o que tiver de mais imediato, de mais despretensioso, só para não ser enganada por essa coisa horrível do acaso.
Mas aí eu lembro que era isso que você estava fazendo, dando um tempo pra você, uns minutos de um livro colorido num canto da livraria. E então eu só consigo pensar que é preciso que você acorde e diga que está tudo bem, e restabeleça a ordem das coisas. Senão vou viver pra sempre feito a mocinha que não começa nunca a se arrumar: o pânico de o namorado cancelar o passeio – cabelo, batom, maquiagem, vestido, quanto mais trabalho maior a dor do tempo perdido.
Não quero ser abandonada pela vida já trajada para o triunfo e sem receber as medalhas prometidas, largada numa cama quando ainda houver tanta dança, tanta música me esperando nas festas. Enquanto você não acordar, nós vamos viver feito um gato reticente, num canto escuro da sala, estranhamente distante do dono, tamanho o medo indisfarçável de, de repente, amar mais do que sete vidas poderiam suportar.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Texto do Reveillon do ano passado
2009 – O que não quero em 2059
Em 2059 não quero uma neta
distante
há duas gerações de anos luz de mim
desfilando novos dilemas mesquinhos
novas tendências da moda música política
computadores biônicos
tridimensionais
Não quero visitas
Caridade
Filhos ocupados mas diligentes
Evitando tabus
-- porque velhos são cheios de tabus
Mesmo eu –
Novos tabus
das novas tendências
que eu não vou entender
Não quero os jovens
achando que sabem qualquer coisa
que eu não sei
não lembro
ou nunca vi
Eu que sei coisas
Que nem em 2059 os meus netos vão saber
Eu que em 2009 penso que sei bem mais que os meus avós
Em 2059 não vou querer que me respeitem
Que me poupem
Dos novos assuntos
cabeludos
me desligando pouco a pouco do que há de bom
Em 2059 vou passar o ano novo pelada
em cima de alguma mesinha de centro cafona
rugas nos seios barriga bunda sexo
-- muitas e muitas rugas no sexo--
serei um disparate uma barbaridade um vexame
Vou devorar a vida o tempo as festas do colégio da minha filha
--vai ser tão bonita, a minha filha --
Cinqüenta anos em mim serão cinqüenta anos a menos no mundo.
sábado, 2 de janeiro de 2010
MIMETÓS
A contração discreta no cenho a cada puxada insistente nos fiozitos ainda rentes do rosto, o queixo já na vermelhidão dos poros doídos. A última inspeção no zoom do espelho que embaça à mínima respiração,
—Porcaria de espelho.
As primeiras palavras da manhã saem irremediavelmente escuras, espremidas no inchaço da laringe. Cobre o pescoço com as mãos e procura no reflexo um ângulo bom, um charme de cabeça que esconda a bolinha quase galinácea na frente da garganta.
Lara irrompe no quarto em busca compenetrada por um sapato,
—Você viu o outro pé deste?
mas já desiste calçando qualquer coisa roxa,
—Meu Deus, Nima, você ainda está assim! Desse jeito não chegamos nunca.
Nima não abala a pose no espelho, sente a pele das bochechas com o dorso da mão.
—Fica sempre uma sensação de carcaça...
E se ressente da voz que desmonta o jogo na aridez indisfarçável do acordar masculino.
—Está uma graça, e veja se vamos logo, Nima, seja um pouquinho sensata e abra mão da meia hora da maquiagem, anda.
Nima se ergue sem mudar o ritmo, traz o estojo de maquiagem com um sorriso de travessura.
—Falo sério, criatura. Hoje estou irritadíssima e você de novo pensando que mulher é assim, o tempo todo saiazinha e enfeitinho na cara, ah, faça-me o favor, cansei desse atraso de vida.
Nima abre o olho com os dedos e molha o lápis na ponta da língua, Lara minúscula espera de pé já com a bolsa no ombro.
—Ah, Larinha... Sabe o que eu sempre quis ser? – guarda o lápis e puxa do estojo um conjunto de sombras — Um manequim, uma boneca dessas de loja, sabe? Sempre achei lindo imaginar as vendedoras diligentes colocando os braços nas mangas dos vestidos, as mãos de gesso em posição de balé. Depois ajeitam as perucas, avaliam as combinações, ajustam o tecido à cintura com alfinetes... Fico pensando que elas devem ter até nomes, essas bonecas.
—Ah, não, Nima! Rímel, não! Anda logo, senão vou sozinha. Olha pra mim, está vendo algum rímel, vestidinho, esses seus saltos altos impossíveis!? Não precisa ser mais mulher que todas as mulheres que você conhece!
—Lara, Lara... Tudo tão automático pra você, minha pequenininha. Você pode abrir mão do que você quiser que continua tendo qualquer coisa nos olhinhos que dá conta de dizer tudo. — aperta os cílios no curvador e sorri melíflua olhando a outra pelo espelho — Eu só vou poder abrir mão disso tudo no dia em que todas as mulheres de todo o país tiverem outras manias, e quando todos os homens tiverem outras manias sobre todas as mulheres. — Abandona o espelho e num salto infantil estende um vestido à amiga — Mas por enquanto sou uma manequim sempre na moda, pode me vestir que eu fico bem quietinha na vitrine.
Lara enfia os braços dela nos buracos das mangas e passa com força a gola pela cabeça, a maquiagem num quase-borrão desastroso.
—Mas você acredita, Larinha, que eu descobri que as vendedoras arrancam os braços, colocam a roupa na manequim, e depois encaixam de novo?? A doida ainda se demorava um tempão de conversa pro ar e a desgraçada ali me olhando sem braço toda sumida num camisolão...
—Anda, Nima, não te tirei braço nenhum.
—Não tirou porque não precisa... Experimenta inventarem aí que mulher-que-é-mulher não anda por aí com braços. Ah! Eu era a primeira a ter de tirar os meus.
—Vira mulher de uma vez então, Nima. Vai lá, dinheiro é o que não falta. Não agüento mais, parece que não quer ser mulher inteira, credo.
—Já falei que não faço de jeito nenhum. — Sobe o zíper e procura um sapato na desordem colorida dos gavetões — Mania sua de achar que mulher é só cavar um buraquinho, eu disse, a qualquer hora me arrancam os braços pra enfiar mais fácil o vestido. Depois me arrancam o sexo, revestem tudo com uma pele fria e eu saio por aí, a mais genuína das infelizes... De jeito nenhum, Lara. Pode ir chamando o elevador, só falta trocar de bolsa. De jeito nenhum... Você pode negar o quanto quiser, mas meu pênis é bem feminino.
—Ah meu deus... Vem logo, o elevador já está aqui. Daqui a pouco você me aparece com um pacote de absorventes.
Nima se detém um instante no espelho da passagem, alisa o rosto num carinho apaixonado.
—E quando o ódio agride, Lara, quando o mundo vem com cinco pedras na mão pra cima de mim, eu preciso de um homem sempre pronto a revidar cada soco, a ameaçar os monstros com golpes cegos de braços. E esse homem leal eu só acho em mim.
Mari Carrara - inspirado no estudo de Hélio R. S. Silva
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