Quando
a temperatura está acima de todos os graus e você vai ao
Departamento Estadual de Trânsito com uma pasta de documentos, você
se preocupa em se encaixar dentro das sombras em todo o caminho desde
o metrô, e depois em se abanar de pé na fila com a pasta sem que os
documentos caiam, e você sai do Departamento Estadual de Trânsito
horas depois com as burocracias um pouco mais resolvidas, na cabeça
três ou quatro carimbos, a atendente que não sorria de jeito
nenhum, você se pergunta por que esperava tanto esse sorriso, os
carimbos, o sol, as sombras já se moveram e é difícil acertá-las,
você pensa em agendamentos, e está com uma estranha vontade de
resolver mais burocracias.
Vasculha
nos arquivos dos fardos mentais insignificantes qualquer pendência
governamental ou similar que possa fazer sentido geográfico nessa
tarde quente, é subitamente muito importante que esta se torne a
tarde das soluções, você odeia pendurar deveres, a cabeça ainda
nos carimbos fotos três por quatro um cadastro, e de repente o rio
Tamanduateí cercado de gente, um cachorro que é resgatado pelo
corpo de bombeiros, algo de ferro mergulhado no rio, algo que sua
mente resolve chamar de grua, deve ser uma grua que desce do caminhão
dos bombeiros e os populares em volta estão filmando, não é um dia
para resgates, sua cabeça ainda se demora nos carimbos, é o dia das
burocracias.
Você
desvia apenas de leve o trajeto na direção do milagre, já decidida
que pode caber um milagre no meio desta tarde quente, muitos
celulares na direção do rio, um vídeo a que depois talvez você
assista na internet e possa dizer que viu tudo de verdade, que o
cachorro de fato entendeu o trabalho dos bombeiros e subiu com eles
aliviado e grato, então você estica discretamente os olhos por
cima dos celulares, só para poder dizer que viu mesmo o resgate. Na
cabeça um pouco de milagre mas ainda um monte de carimbo
requerimento pasta suor três por quatro biometria, ali embaixo no
rio Tamanduateí você vê por apenas um segundo o bote com o corpo
de bruços, a mulher azulada e dura, as pernas, a saia encharcada, o
corpo que ondula nos celulares, você viu por apenas um segundo, a
imagem que ficou desta tarde muito quente perto do Departamento
Estadual de Trânsito.
E
então você continua tentando chegar ao metrô, carimbos, cadastros,
é possível que numa tarde como esta o corpo de uma mulher seja
filmado de bruços no bote dos bombeiros dentro do rio Tamanduateí,
complicando o trânsito, você não sabe se ela foi jogada ali
durante uma briga, se veio arrastada pelas águas na enchente, se ela
pulou, não aguentou o peso das crianças das sacolas do medo, de
toda forma assassinada, catraca, sua pasta de documentos
diligentemente contra o peito, assuntos resolvidos, o bote,
departamento, perícia, a imagem rápida, azulada e dura.