segunda-feira, 2 de junho de 2014

A Guerra
Eu nunca mais voltei naquele lugar e por isso a minha lembrança é de que era o maior lugar do mundo. Minha mãe me puxava por uma ladeira enorme, fazia muito sol e as pessoas na fila tinham todas muita pressa ou muito desânimo. As que tinham desânimo parece que iam ali sempre, como que todo dia.
Já fazia muito tempo que em casa ninguém me dizia nada, deixavam a televisão ligada e se calavam, e eu já não perguntava dele e já eu mesma quase não falava, e nem olhava mais a porta no horário da novela porque eu já tinha entendido que ele não ia aparecer de repente. E nesse dia eu ainda não sabia se queria ou não queria ir, mas não tinha ninguém pra ficar comigo tantas horas e – Pega um brinquedo e vem, menina – eu puxei da cama um boneco qualquer que tinha sido dele, e corri pro trem.
A mãe continuava não dizendo nada e eu não perguntava porque pra todo o mundo parecia mais fácil se eu simplesmente não estivesse percebendo. Como se eu não tivesse reparado que meu irmão nunca mais voltou pra casa, nunca mais me trouxe nada, nem me jogou pedaços de tomate durante o jantar, nem me escondeu no armário na hora do banho, nem fez promessas, projetos grandiosos que ele me contava depois de me sentar em cima da mesa da cozinha onde ele dizia que as coisas eram levadas a sério. E naquele dia no lugar imenso minha mãe não tinha nenhum alívio no rosto, mas por alguma razão eu tinha passado a noite conversando com a lua e me dei toda a certeza de que ele ia voltar pra casa.
Eu já sabia que ele tinha começado a vender droga, e que tudo tinha dado errado. Mas eu sabia também que isso um monte de moleque fazia ali no bairro e eu sentia que naquela tarde ele ia pedir desculpas a quem quer que fosse que ele tinha desobedecido, e ia ficar tudo bem. 
Quando a gente entrou, eu me lembro do frio, um frio sem sentido que era como se o sol nunca chegasse ali. Fiz que o boneco voava pelos corredores, mas fiz só pra minha mãe achar que eu estava feliz com o passeio, mas era difícil fingir porque minha cabeça ficava bem na altura das algemas dos homens que toda hora passavam puxados por guardas gigantes, os rostos baixos, a roupa igual, e eu a todo tempo num susto achando que qualquer deles podia ser o meu irmão – e era; qualquer um.
E os homens nas algemas estavam todos de chinelo e eu lembro que achei aquilo muito estranho porque chinelo é uma coisa tão livre. Ficava olhando passarem tantos pés soltos em havaianas puídas e aqueles pés me lembravam de praça, churrasco, pipa, rua, demarcação de gol de futebol. Depois pensei que a gente usava tanto chinelo porque sapato é muito mais caro, mas aí logo em seguida pensei que ainda assim – e talvez por isso mesmo – chinelo fosse uma coisa tão livre.
A gente sentou finalmente e esperou por um tempo que me pareceu muitos dias. Minha mãe não falava comigo a não ser pra me dar um suco ou uma bolacha seca, mas de vez em quando falava com outra mãe, qualquer coisa sobre Deus, ou sobre injustiça – só que por alguma razão minha mãe não parecia achar nada daquilo injusto, e acho que isso é o que mais doía nela. E de repente ouvi uma senhora comentar algo que jamais tinha passado pela minha cabeça – O meu filho já é a terceira vez! – e nessa hora eu pensei que então dali pra frente seria sempre assim. Eu percebi que os rapazes uma hora crescem, e vão presos, e depois vão presos de novo, e pela terceira vez, e que era essa a sina dos nossos homens, como num país que entrega todos os seus meninos à guerra.
Durante toda a tarde minha mãe seguia com os olhos uma mulher apressada, de salto alto, que quase nunca parava em nós, e não olhava pra minha mãe porque sabia que ela estava esperando alguma notícia, e aí eu fui percebendo que de fato era sempre assim pra todo o mundo, tanto que a mulher vinha e dava a notícia para as outras mães, que já sabiam como as coisas eram, e saíam, como quem recebe uma hóstia e volta pra casa pra lavar roupa. E depois da notícia a mulher entrava numa sala em que as pessoas corriam, ou às vezes riam de quaisquer coisas, e quanto mais elas riam mais eu me convencia de que aquela era a ordem natural, de que os irmãos crescem pra serem presos uma, duas, três, intermináveis vezes.
Eu girava o boneco como se ele fosse um trapezista porque eu sabia que estava chegando a hora e era cada vez mais importante que eu não estivesse entendendo nada, e eu pensei bem forte que se eu rodasse o boneco exatamente 18 vezes – a idade do meu irmão – antes de a mulher começar a falar com a minha mãe, a notícia seria boa.
E eu comecei a rodar primeiro devagar porque pensei que ela ia demorar, mas ela foi chegando com a mesma cara que ela fez toda vez que tinha uma notícia, e eu rodei o boneco mais rápido, e mais rápido, mas ela já começou a falar com a minha mãe sem nem olhar pra mim e não deu tempo de eu rodar o boneco 18 vezes – e é capaz que até hoje eu me culpe por isso –, mas eu continuei rodando o boneco porque era importante que eu não estivesse entendendo nada – Nós fizemos tudo o que foi possível --, era fundamental pra minha mãe que eu não entendesse – Mas não significa que ele vai ficar preso os próximos cinco anos inteiros  –, na verdade era absolutamente necessário pra mim que eu não estivesse entendendo nada e como eu rodava o boneco como se não estivesse prestando a menor atenção de vez em quando a mulher de salto olhava pra mim e eu sei que eu tentei segurar o choro mas ele veio assim, silencioso, implacável --A senhora precisa voltar daqui a dois anos pra pedir... – e então ela me olhou de novo e acho que parou um pouco de falar, e eu percebi que até mesmo pra ela era preciso que eu não estivesse entendendo nada.
Minha mãe, que até aquele momento apenas assentia com a cabeça, também olhou pra mim, e eu senti que ela e a mulher de salto olhavam meu choro, e eu rodei mais rápido o boneco só que agora não adiantava mais rodar boneco nenhum.
Eu cresci uns vinte anos naquela tarde, e cresci sem meu irmão, que morreu nove anos depois, recém-saído da terceira cadeia. Eu disse que nunca mais voltei naquele lugar, mas na verdade eu nunca mais saí de lá. Ficamos pra sempre presos – eu, e também minha mãe, e a mulher de salto, que não deveriam nunca ter me visto chorar.


Um comentário:

Anônimo disse...

A mulher de salto chora... e às vezes finge que é ficção, pra não secar. Beijo. Maristela