Tantos anos atrás as tardes
arrastavam suas seis, sete, oito horas num silêncio com fundo de televisão, são
doídos demais esses silêncios com televisão, umas vozes de estranhos que
ficaram familiares, jornalistas histéricos, filmes dublados, o pica-pau. Era
bom deitar no chão, ou no sofá, ou na cama, tampar bem forte os ouvidos e
fechar os olhos pra ficar imaginando que as coisas existiam, que havia quem
sabe uma festa, que tinha quem sabe um romance – um namorado, as outras
crianças diziam --, um colega que puxasse uma dança e fizesse um elogio, ela
que era grande, cabeluda, pesada, braços de mais, pernas de mais, dentes de
mais, as outras pequenas escolhendo seus príncipes remelentos num baile diário.
Ela feito as irmãs feias da
Cinderela apertando os pés no sapatinho que não cabe, jamais caberia, e depois
descobriu que na verdade elas mutilavam seus dedos e saíam cambaleando no
cristal atrás de um amor que só aceita delicadezas miúdas, perfeições. Tantos
anos passando e ainda as mesmas lutas, mutilações de dedos, encolhidas, atrás
de caber em abraços tão curtos, em ideias pequenas, amores minúsculos.
Hoje o show no palco logo adiante
e ela feliz pulando, pulando com todo aquele tamanho agora já organizado em
formas mais claras, modelado por anos de apertos, de sexo, de quedas, pulando e
recitando todas as letras como se não houvesse mais nada no mundo que não essa
música, mas é incrível como há tantas coisas em volta disso. E aos poucos ela
pula menos, e quando imóvel percebe o que mais lhe incomoda: a cintura.
A sua cintura que é na verdade um
vão macio entre o peito e as ancas fortes e que ela acha que foi feito e serve
apenas para que dois braços se apoiem por trás e descansem serenos durante um
show, balançando levemente na música que agora é lenta e bonita. Ela sente o
vazio na cintura e o frio no ouvido em que ninguém cochicha uma lembrança
engraçada, e olha ao redor lembrando que às vezes tão menina observava o pátio
na escola e sentia que todas as pessoas eram tristes e sozinhas.
E agora em volta dela até mesmo as
mulheres com suas cinturas tão preenchidas de abraços ela sente que são
tristes, que os braços deles pesam doídos sobre as ancas que não pulam nem
dançam, e mesmo assim por qualquer razão ela aceita uns quaisquer braços que
lhe vêm na dança, uma conversa que é boa, mas solitária e teatral como são
essas conversas, e de repente esses braços acomodando celular e chave com
esmero em cima da escrivaninha dela, Fique à vontade. E ela entra num banho
rápido – é preciso que seja rápido porque cada instante que eles passam
distantes revela o tamanho de toda a distância.
No banho rápido ela não pensa
nada, porque é sempre melhor deixar pra pensar depois, mas ainda assim ela
sente a cintura vazia, e tem vontade de fechar os olhos embaixo da água e
esperar o rapaz desaparecer. Só que ele não vai sumir, não ainda, não já.
Mas quando ela sai do banho e
entra no quarto dela encontra a luz do teto apagada, e os três abajures acesos,
até mesmo a lâmpada vermelha que antes estava fora da tomada, e o fato de que
ele encontrou uma tomada, e também achou outra tomada para o ventilador,
torna-o de repente tão íntimo, tão dentro do quarto, e ela pensa se ele também
lutou contra o mau contato do interruptor desse abajur da luz vermelha, esse
mau contato que é tão dela, e agora ele sabe, e ele autonomamente circula nos
seus detalhes e domina a dinâmica dos seus defeitos, e ela se pergunta também o
que é que fica faltando, o que diferencia esse homem de repente tão próximo que
sorri na meia luz segurando um dos livros que escolheu da estante, o que o
diferencia dos poucos homens que de fato lhe preencheram a cintura num gesto
tão completo que as costas mesmo de pé se sentiam deitadas no peito quente e
sempre tão distraído que na verdade apenas abraça por hábito, justamente porque
ali há uma cintura à espera desse braço.
Talvez não haja nada de diferente
entre este e aqueles outros poucos, só que ele veio sem sentido, sem cintura,
sem promessa, e ela sente que é assim que as pessoas têm entrado e saído da sua
vida, como se elas que não coubessem, que já chegassem mutiladas e ainda assim
não coubessem nesse espaço dela que sufoca e aperta. Começa a amanhecer e o
rapaz que significava pouco já quase não significa nada, ele, que não perguntou
nem mesmo qual o trabalho dela, ou o que ela gosta de fazer, e ela vira para o outro lado, de costas pra ele, encolhida,
gelada do ventilador, pra não observar o sono ainda alcoolizado de um estranho.
E é nessa hora que sem aviso, sem
preparo, sem contrato, ela sente por trás um braço no enlace da cintura,
apoiado, pacífico, pleno. Dormem.
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