sábado, 13 de abril de 2013

Cintura



     Tantos anos atrás as tardes arrastavam suas seis, sete, oito horas num silêncio com fundo de televisão, são doídos demais esses silêncios com televisão, umas vozes de estranhos que ficaram familiares, jornalistas histéricos, filmes dublados, o pica-pau. Era bom deitar no chão, ou no sofá, ou na cama, tampar bem forte os ouvidos e fechar os olhos pra ficar imaginando que as coisas existiam, que havia quem sabe uma festa, que tinha quem sabe um romance – um namorado, as outras crianças diziam --, um colega que puxasse uma dança e fizesse um elogio, ela que era grande, cabeluda, pesada, braços de mais, pernas de mais, dentes de mais, as outras pequenas escolhendo seus príncipes remelentos num baile diário.
      Ela feito as irmãs feias da Cinderela apertando os pés no sapatinho que não cabe, jamais caberia, e depois descobriu que na verdade elas mutilavam seus dedos e saíam cambaleando no cristal atrás de um amor que só aceita delicadezas miúdas, perfeições. Tantos anos passando e ainda as mesmas lutas, mutilações de dedos, encolhidas, atrás de caber em abraços tão curtos, em ideias pequenas, amores minúsculos.
     Hoje o show no palco logo adiante e ela feliz pulando, pulando com todo aquele tamanho agora já organizado em formas mais claras, modelado por anos de apertos, de sexo, de quedas, pulando e recitando todas as letras como se não houvesse mais nada no mundo que não essa música, mas é incrível como há tantas coisas em volta disso. E aos poucos ela pula menos, e quando imóvel percebe o que mais lhe incomoda: a cintura.
     A sua cintura que é na verdade um vão macio entre o peito e as ancas fortes e que ela acha que foi feito e serve apenas para que dois braços se apoiem por trás e descansem serenos durante um show, balançando levemente na música que agora é lenta e bonita. Ela sente o vazio na cintura e o frio no ouvido em que ninguém cochicha uma lembrança engraçada, e olha ao redor lembrando que às vezes tão menina observava o pátio na escola e sentia que todas as pessoas eram tristes e sozinhas.
    E agora em volta dela até mesmo as mulheres com suas cinturas tão preenchidas de abraços ela sente que são tristes, que os braços deles pesam doídos sobre as ancas que não pulam nem dançam, e mesmo assim por qualquer razão ela aceita uns quaisquer braços que lhe vêm na dança, uma conversa que é boa, mas solitária e teatral como são essas conversas, e de repente esses braços acomodando celular e chave com esmero em cima da escrivaninha dela, Fique à vontade. E ela entra num banho rápido – é preciso que seja rápido porque cada instante que eles passam distantes revela o tamanho de toda a distância.
     No banho rápido ela não pensa nada, porque é sempre melhor deixar pra pensar depois, mas ainda assim ela sente a cintura vazia, e tem vontade de fechar os olhos embaixo da água e esperar o rapaz desaparecer. Só que ele não vai sumir, não ainda, não já.
    Mas quando ela sai do banho e entra no quarto dela encontra a luz do teto apagada, e os três abajures acesos, até mesmo a lâmpada vermelha que antes estava fora da tomada, e o fato de que ele encontrou uma tomada, e também achou outra tomada para o ventilador, torna-o de repente tão íntimo, tão dentro do quarto, e ela pensa se ele também lutou contra o mau contato do interruptor desse abajur da luz vermelha, esse mau contato que é tão dela, e agora ele sabe, e ele autonomamente circula nos seus detalhes e domina a dinâmica dos seus defeitos, e ela se pergunta também o que é que fica faltando, o que diferencia esse homem de repente tão próximo que sorri na meia luz segurando um dos livros que escolheu da estante, o que o diferencia dos poucos homens que de fato lhe preencheram a cintura num gesto tão completo que as costas mesmo de pé se sentiam deitadas no peito quente e sempre tão distraído que na verdade apenas abraça por hábito, justamente porque ali há uma cintura à espera desse braço.
    Talvez não haja nada de diferente entre este e aqueles outros poucos, só que ele veio sem sentido, sem cintura, sem promessa, e ela sente que é assim que as pessoas têm entrado e saído da sua vida, como se elas que não coubessem, que já chegassem mutiladas e ainda assim não coubessem nesse espaço dela que sufoca e aperta. Começa a amanhecer e o rapaz que significava pouco já quase não significa nada, ele, que não perguntou nem mesmo qual o trabalho dela, ou o que ela gosta de fazer, e ela vira para o outro lado, de costas pra ele, encolhida, gelada do ventilador, pra não observar o sono ainda alcoolizado de um estranho.
    E é nessa hora que sem aviso, sem preparo, sem contrato, ela sente por trás um braço no enlace da cintura, apoiado, pacífico, pleno. Dormem.