Exploro o espelho como querendo virar suas páginas, eu quero ter coragem de me perguntar por que eu preciso às vezes me prender assim, por que é que de uma hora para a outra eu baixo os olhos e ato pés e mãos aos móveis mais pesados da sala nova.
Bem na hora do vôo as minhas asas num muxoxo proposital e vexaminoso, as garras escondidas na minha própria carne, os olhos distraídos num torpor de fantasias. Por que será que, justo na hora de crescer os braços, estender as mãos até tantos dos meus sonhos – por que tantas mortes no meu sonho agora? Por que tanta morte nos meus sonhos? –, por que será que quando o mundo me vê tão grande eu me encolho doída na caixinha mais minúscula que alguém me oferece?
Por que será que a vertigem do vôo que eu talvez pudesse dar me finca os pés, afunda os passos nessa lama densa. Que lugar comum é esse a que eu me entrego e me apago e me rasgo.
Onde a vontade de quebrar minhas correntes, despontar livre de novo, desperta, desencaixada dos cubículos pequenos, da mesquinharia da vida dos outros, de volta no fluxo das minhas palavras, do meu samba, da minha noite. Onde a coragem de me soltar do eixo mecânico que me dá corda, bailarina de plástico a rodopiar aflita no espaço marcado da caixinha.
Chego a pensar que foi tudo um grande medo da queda que podia vir depois de um vôo. Mas virando as páginas desse espelho cru, penso que é o pavor do espetáculo de bater mil vezes as asas, espalhar vento nos cabelos de todos, fazer um estardalhaço de giros, arfadas, gritos, sem conseguir – nunca, jamais – sair do lugar; e não por uma distração do corpo ou do coração, mas porque estaria ali, inegável, inadiável, a notícia de que essas asas nunca prestaram para voar.