quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Descanse em paz

e me tirou o direito a uma agonia profunda, a um descabelar sem precedentes na história de todos os nossos amigos, parentes, talvez dos livros. Imagine-se o que não teria sido a tragédia da sua morte nos nossos vinte e poucos anos, nos nossos vinte e tantos planos, a paralisia completa de todos os meus sentidos diante da notícia, a vista embaçada de medo, a frouxidão dos músculos, a falta de forças para falar, protestar, e todos juntos com suas mãos tão jovens me erguendo do chão no espetáculo do túmulo e semanas depois todos já clamando por um recomeço, porque seria preciso um recomeço.

Poderia ter morrido meses antes da festa, ou dois, três anos depois do casamento, quem sabe eu ainda com a Cabíria no ventre, cada chutezinho uma vontade de vida e eu atada à catatonia da sua morte imprevisível, arrebatadora, inaceitável. Eu para sempre com a dignidade da jovem viúva, eu com o direito a mil ligações telefônicas. Eu com a beleza artística de longas camisolas negras a girar no carpete do quarto ao som de cameratas barrocas, gregorianas, despedaçando rosas em pétalas pegajosas de lágrimas, os vizinhos aos gritos no portão, e a ingenuidade risível de um copo com água e açúcar que me trariam incansavelmente até que eu conseguisse abandonar o sonho de você, o nosso sonho.

Mas você com a sua paciência deixou o tempo passar em nós, você me privou de uma tragédia a que eu pudesse eternamente culpar pela absoluta mesmidão dos meus dias, a que eu pudesse atribuir essa indiferença dos anos uns dos outros, ou pelo menos conferisse à trivialidade das rebeldias de Cabíria a melancolia misteriosa dos órfãos. Você deixou minha vida dormir do seu lado, no desconforto sempre alerta dos insones, até que ela não soubesse mais aonde ir ao acordar, até que ela não quisesse ir a lugar nenhum.

E agora, quando já era tarde demais para que sua morte me trouxesse uma tristeza profunda, quando já não há um golpe que me traga destaque, qualquer coisa pesada nos olhos, qualquer coisa de sábio no sorriso que por mais que se abrisse não seria pleno, agora quando já estávamos quase prontos a aceitar nossos passos juntos, agora que já não se pode perder um futuro, quando já não há plano, não há sonho a se destruir, a sua morte veio cedo demais, e, uma vez que veio cedo, veio demasiado tarde.

Agora que eu talvez já não tivesse por você o puro amor a ser violentado pela perda, a sua morte me traz uma tragédia medíocre, que me priva do asilo das suas conversas amenas, do seu chá, das suas idéias recentes de envelhecimento e companheirismo, da continuidade imaculada de um projeto, e me atira de repente no terreno das senhoras solitárias, sujeitas à piedade das outras senhoras, aos pensamentos perversos de quem me prevê longos vinte e cinco, trinta anos de uma castidade amarga. Você que não se foi a tempo de me tornar especial não podia me deixar aqui assim, sem beleza nem arrebatamento suficiente para rodar com as pétalas de rosa estraçalhadas entre as unhas. E ninguém virá me ajudar a recomeçar, não há recomeço. A tragédia ficou em mim, amornada, frouxa, a me amolecer ainda mais as carnes, os lábios, as bolsas embaixo dos olhos.

Hoje, na voz quase embargada de um choro encruado, nessa dolorida ausência do desespero que não me entra, não me toca, nessa ausência profunda do que seja você e do que não seja você, nessa incapacidade que sinto para o descabelamento, hoje só consigo dizer que mais incompleta do que a sua vida terminada assim numa freada é a minha vida que você embalou num sono indolente até ontem e condenou a um coma social a partir da madrugada.

Hoje só consigo dizer, meu bem, que a casa não respira, não há vozes, quase não há luzes, e é provável que nunca mais haja geléia de physalis, porque nunca fizemos questão, eu penso. Dizer que Cabíria não me olha nos olhos, talvez porque tenha medo de não encontrar nada, e também que sem você não há desejo nem dor, e as visitas todas perderão o jeito para a amizade, todas com a sensação de que os móveis ainda lhe pertencem, vão sentar de leve na borda do sofá porque até as cadeiras, as almofadas, as poltronas devem estar condoídas.

Só tenho a dizer, meu amor, que espero haja muita vida nesse lugar onde eles colocam gente como você, porque eu estou condenada para sempre, todo tempo, até o fim, a descansar em paz.

2 comentários:

Mari Carrara disse...

ai meu santo, tem que falar toda vez: NAO SOU EU, NÃO É O LUCAS, não é a forma como eu vejo o mundo, nem como eu acho que o casamento tem que ser, nem como as pessoas deveriam achar, É PRESONAGEM, PERSONAGEM, EU-LÍRICO!! eu posso não ser nenhuma beauvoir mas também tenho o direito de falar da mulher desiludida. ou não?

Stella disse...

explêndido.