É preciso que o cachorro ainda pule quando eu abro a porta, será que ele pode parar com isso essa semana? Um dia abro a porta e ele me olha do fundo da sala, imóvel, ele entendeu tudo, o país, entendeu os meus olhos todas as noites quando abro a porta eu mesma ainda sem acreditar, meu cachorro de repente também com esses olhos imóveis de estarrecimento.
Estarrecimento é quando o cachorro não consegue sair da cama para comemorar a sua chegada, e é quando você não consegue sair de casa para comemorar a sua vida, é quando o vizinho não encontra a porta, não sabe onde foi parar o seu país.
Eles dizem que o Brasil tem mais de sete mil quilômetros de litoral, o mar batendo bonito na areia, mas já não parece assim, aonde foi o mar, não cabe o mar e tudo isso na mesma terra, estamos secos de incêndio.
A gente procura, eu e o cachorro, as janelas dos vizinhos sentindo a mesma coisa, é preciso que os vizinhos sintam a mesma coisa, não porque diminua a coisa, a coisa é imensa, mas só porque parece que poderemos um dia pular todos juntos da cama e comemorar o retorno do país, o barulho do elevador do país subindo de volta, o som das chaves na mão do país, nós e os vizinhos, é bom saber que eles moram nas mesmas dores, esperam os mesmos gritos.
É preciso que o cachorro ainda salte e abane o rabo quando a gente entra e os vizinhos ainda recebam desconhecidos sensuais para um pouco de vinho ou uma paixão ou um pedaço de pizza, será que os meus vizinhos vão continuar recebendo desconhecidos diante da minha janela morta, quando o país inteiro estiver apagado, vai ter alguma luz nas janelas?
A gente escuta que o ódio cresceu ainda mais, e pra onde pode ser, que espaço tem, se não é no ônibus silencioso que a gente pega pra casa, se não é na janela do vizinho, se não é no cachorro, é preciso que o cachorro tenha alguma felicidade, pelo menos ele, a energia de pular da cama até a porta, se nem ele vier, já não sei, se eu abrir a porta e ele não vier, não sei.