De tanta alegria, esse
era um amor que assombrava os meus dias com a possibilidade da tragédia, porque
só a tragédia encerraria aquilo que a gente vivia. E por isso esse amor era um
cão alerta dentro de mim, que me revirava as entranhas cada vez que eu ouvia
uma ambulância ou bombeiro rasgando a rua depressa na fúria que exigem as
tragédias.
Podia ser você, no fim
da avenida embaixo de um ônibus, de um poste de energia, uma facada, um enfarto,
e era importante calcular os seus horários, intuir sua geografia, e de fato
como um cão que precisa antever o perigo ainda que não possa fazer nada contra
ele, eu não podia relaxar enquanto aquelas sirenes não deixassem de ser
possíveis reverberações urbanas dos seus gritos.
E eu pensava com muita
força em você recebendo os socorros, você até sorriria para os paramédicos
porque era importante que eu pensasse em você muito bem, como se a minha convicção
de que você estava em perigo, mas ainda a salvo, pudesse manter a tragédia
afastada. A tragédia é para os incautos, os que não estão prestando atenção em
todos os caminhos do perigo.
Daí você me escrevia
sobre estar trazendo chocolate ou pepino da vendinha e depois chegava e ia
tirando a roupa e depois falava qualquer coisa embaixo do chuveiro e entrava no
nosso lençol e me abraçava como se você não tivesse quase morrido, como se você
não pudesse quase morrer todos os dias e acabar com tudo isso, como se você não
corresse imensos riscos gerando toda essa felicidade, a felicidade que sempre
chama tanto a atenção da tragédia.
Então só dessa vez as
sirenes passaram correndo na minha frente e não acionaram nenhum tipo de
mecanismo dentro de mim, talvez porque você supostamente não estivesse ali na região
da nossa casa, você certamente no meio das suas correrias e essas sirenes tão
completamente dissociadas de você, por isso eu continuei caminhando, descendo a
avenida talvez sem lembrar que você existia e menos ainda que você podia deixar
de existir.
E quando eu cheguei
enfim na nossa rua as sirenes já não soavam e as luzes rodavam lentas, sem
pressa nenhuma, e eu supus que fosse um gato na árvore, bem na porta do nosso
prédio, e os vizinhos já quase carpideiros me olharam plastificados e ninguém
dizia nada, mas também não me deixavam exatamente passar, apenas tentavam me
paralisar numa tensão que não existia em mim, fosse o que fosse que eu não
tinha nada a ver com isso, eu trazia suco de laranja pro dia seguinte, você ia
ficar tão contente com o suco de laranja, eu tinha uma bolha no calcanhar por
causa do tênis novo e vinha sonhando com um banho, mas era isso, o corpo
embaixo da lona preta, você tinha pulado do vigésimo andar. O nosso vigésimo
andar.
A única vez em que eu
não senti o perigo, única vez em que eu não espreitei por entre os meus
delírios os caminhos da tragédia, essa tragédia que tinha aprendido a seguir
também a tristeza, a mais discreta das tristezas, eu fiquei pra sempre dentro
daqueles quatro ou cinco quarteirões que eu desci depois que as sirenes
esvoaçaram o meu casaco descendo a avenida numa pressa que eu não tinha, fiquei
ali nos minutos em que você morria e eu nem desconfiava, não tentava te salvar
com a minha previdência nem com a minha felicidade.
Você ficou soando
dentro da minha cabeça na única sirene que me atravessou e eu não ouvi, eu relaxei
uma tarde e você morreu.