Você prosaicamente procura o
outro pé do sapato na pressa do elevador que você já deve ter chamado, termina
o copo de leite, enxuga a mão na roupa, e é provável que não pense em nada, só
em correr, e chegar singelamente ao trabalho, e eu fico pensando que nunca
houve sintonia, que a gente começou a ouvir uma música juntos, mas nunca encontrou
propriamente a estação, e a música ficou lá, num discreto chiado, sem que a
gente movesse o botão desse rádio nem pra frente nem pra trás, ficamos assim em
desajuste na ilusão de que o importante é estar ouvindo de alguma forma esse
som que a gente não consegue saber de onde vem, nem desligar, nem aumentar, nem
arrumar.
A vertigem que ataca o início de
um sono vespertino. Quase dormir mas despertar a tempo de concluir que se vai
de fato dormir e que a sensação é de queda, como se o sono da tarde fosse um
buraco, um salto do colchão para dentro da cama, uma escorregada na espiral
infinita do universo das molas, é essa a cumplicidade que eu preciso ter com as
pessoas, é preciso que elas também reconheçam nelas essa vertigem logo antes de
pular para o sono, a cumplicidade nesses pequenos fenômenos íntimos, e você
parece que escapa de todos, nós numa total dissintonia.
Cumplicidade também nos fenômenos
de infância, esses que vão nos compondo aos poucos, você contornou todos eles,
você parece que não tem os seus segredos coletivos. Esses segredos que eu chamo
de segredos porque ninguém fica falando deles, e de coletivos porque muita gente sabe, todos sentem, a vertigem antes do sono da tarde, o perigo de uma mão
surgir do fosso do elevador tateando o buraco da ventilação, ou de aparecer
mais uma pessoa na imagem do espelho, ou de um semiconhecido sentar do seu lado
no ônibus sem quase nenhum assunto, de morrer de repente com a roupa íntima não
muito limpa a ponto de as pessoas da autopsia, do hospital, ou seus parentes
concluírem que uma pessoa com esse cheiro nem merecia de fato viver.
Talvez este da morte sem banho
não seja tão coletivo assim, mas de toda forma você não tem, nem esse, nem
qualquer outro segredo fenomenológico que nos coloque em sintonia ou
cumplicidade, você sai e volta sem que nenhum detalhe da existência tenha
trazido você pra mim durante o dia.
No banho o condicionador escapa
em excesso na minha mão. Aperto o tubo instintivamente criando um prenúncio de
vácuo e encosto a boca do frasco na minha mão recolhendo de volta o que não vou
usar. O frasco suga o condicionador da minha mão feito um animal aos soluços,
espasmos de afogamento, e fico pensando se você possui esse segredo coletivo,
se você sabe recolher de volta o condicionador que saiu a mais, essa sabedoria
que ninguém transmite, que vem da física simples que foi se construindo em nós
conforme apertamos frascos, experimentamos diferenças de pressão, e concluo que
não, você vive assim livre de empirismos, foge às sabedorias íntimas que não
vêm nas notícias nem nos livros, e fico pensando se o mundo não se divide
justamente entre pessoas que sabem colocar o condicionador de volta, assim nessa
violência sofrida do frasco sufocando na palma da mão, a tomar fôlego com a
boca emborcada no que ele próprio cuspiu, e pessoas que simplesmente jogam o
excesso no chão por não visualizar qualquer outra possibilidade. E nem sequer
pensam que há pessoas que pensam nisso.
E então você provavelmente está
desse outro lado do mundo, o mundo das pessoas que não têm segredos coletivos,
e que jogam o excesso do condicionador no chão ou mesmo ensebam os cabelos, e
que não pensam que há pessoas que pensam nisso, não pensam que há pessoas que
pensam na vertigem do sono da tarde, e na aflição de olhar muito tempo um
quadro de Jesus temendo que ele possa piscar, e na angústia de não saber se
aquela senhora que entrou no metrô já percebeu que é idosa há tempo suficiente pra
não se ofender se você ceder o assento, e depois na angústia de imaginar o dia
em que alguém lhe ceder o assento pela primeira vez, e ficar pensando se você
já terá se acostumado com sua própria idade antes que alguém lhe surpreenda com
isso, e no meio desse pensamento não ceder o assento, apenas levantar e sair,
na esperança de que ninguém o ocupe, apenas aquela senhora que talvez ainda não
seja tão senhora assim.
Você está aí, desse outro lado,
no mundo das pessoas sem segredos coletivos e talvez esteja aí nossa
dissintonia, esteja aí a razão de eu sentir tanta cumplicidade em todo o resto
do mundo que não é você. Daí eu chego do trabalho e você já está aí sorrindo
com toda a sua leveza, e pelo menos eu posso imaginar que quando você fica aí
olhando a janela não está pensando em todas as pessoas que vivem nesses tantos
apartamentos e se perguntando se alguma delas não poderia te fazer mais feliz, você não
deve estar fazendo isso porque é isso que muitas pessoas fazem, em segredo
coletivo, procuram outras janelas onde mora uma felicidade ideal, e daí você
vem na minha direção com um copo de alguma bebida e eu fico ouvindo esse
zumbido que é a nossa musiquinha fora de sintonia, a música que a gente acaba
gostando tanto de ouvir, e que se um dia desaparecer vai ficar um silêncio
muito doído, mas que eu também vou me acostumar, porque a gente vai se
acostumando com os silêncios que as pessoas deixam quando vão embora, difícil é
se acostumar com a música fora de sintonia que na verdade talvez sejam nossas
duas músicas tocando ao mesmo tempo e a gente nunca tenha reparado nisso, que
estamos ouvindo coisas diferentes, juntos, e você me dá um gole do que está
bebendo, e tudo pra você parece estar perfeitamente bem.
E você entra no banho, e eu passo
o tempo do seu banho pensando em perguntar o que você faz quando o
condicionador sai em excesso, e fico pensando que você pode responder que isso
nunca aconteceu, o que seria um completo absurdo, um sinal chocante de que você
se adapta imediatamente às novas situações da sua vida, em qualquer
quantidade, ou mesmo você pode me responder que não faz nada, que só lamenta, e
quando você sai do banho eu concluo que não é seguro fazer essa pergunta,
porque talvez eu queira continuar ouvindo nossa música sem sintonia, e que
talvez você depois do banho dê alguma risada silenciosa olhando a tela do seu celular e
isso seja algum segredo coletivo só seu, dessa sua parte do mundo em que eu não
vivo, e quem sabe a gente possa viver assim, sempre assim, pra sempre.
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