quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Catálise


É de noite e por isso o vidro que dá pra rua vira quase um espelho, menos quando passa o farol de um carro lá fora. Um carro que está provavelmente indo fazer alguma coisa mais interessante que ficar caminhando numa esteira.
Meus dentes batendo, a barriga molhando indigna por trás do elástico da bermuda, não consigo parar de pensar na ideia odiosa de estar tantas noites numa academia, mais uma hora que eu perco fazendo mais uma coisa que não significa nada, uma hora gastando a mim mesmo. Dissipando o que meu dia indevidamente economiza – nas tantas horas que também não me dizem nada.
Como se ao longo do dia eu existisse menos do que fui feito pra existir, e então engordo. Possivelmente na esperança fisiológica de existir mais tarde, um dia, tudo o que fui sobrando.
Perder minhas noites aqui porque me falta em juventude o que me vem em ganas de engolir, beber, toda aquela fartura das bandejas por quilo, latas, garrafas, esses tantos consolos, e é preciso vir aqui me gastar para poder me economizar, durar mais anos com muitas horas e poder passar mais tempo fazendo essas coisas que não me dizem nada.
 As pessoas se cruzam no caminho dos seus exercícios e sorriem, e se falam. Quem há de compreender por que se falam. Feias, suadas, não se conhecem, não têm nada em comum a não ser o fato de estarem se gastando no mesmo lugar na mesma porcaria de hora nobre, com a novela muda e legendada em metade dos televisores.
Hoje a música está excelente, quero elogiar o professor que escolhe os CDs, mas nem para isso quero falar, essa é a hora em que estou completamente ausente de mim, não há absolutamente nada nos meus movimentos que diga quem eu sou, autômato, passos mecânicos tentando vencer a hora mais lenta do dia.
Não, é inacreditável que alguém nessa situação se sinta com identidade suficiente para interagir.
Minha não-pessoa lamentando a incapacidade de elogiar a trilha sonora e uma outra não-pessoa comentando com outra que hoje a música está de-cortar-os-pulsos. O mundo se divide em gente que.
Parar com a mania de dividir o mundo. Mas realmente o mundo se divide, não adianta, o mundo terminantemente se divide toda hora, e se divide agora em pessoas que veem a beleza das coisas soturnas e aquelas que querem enfiar alegria no ouvido da gente o tempo todo, uma alegria nervosa, histriônica, até mesmo na camiseta amarelo neon subindo e descendo na barra de alongamento.
Justo o alongamento que é uma coisa lenta, fibrosa e profunda, a única profundidade nessa caixa espelhada quente de glicogênios e catálises.
Ainda falta meia hora. O vidro da rua me reflete porque já é bem noite e já quase não passa farol de carro porque quase todos já chegaram em casa. Pior, todos chegaram nas suas academias. Todos os humanos urbanos diante dos seus espelhos gastando a si mesmos, porque éramos pra ser muito mais do que somos durante o dia e então vamos sobrando, e quando chega a noite é preciso se gastar muito, pra não sobrar, e vai-se gastando o tempo, tanto tempo, que quando eu me der conta nem sobrei nem faltei, só quase não existi.