Existe um telefone celular e ele é doentiamente um
companheiro, na mão, no bolso, bolsa, roupa, metrô, ele é um companheiro quase maníaco guardando suas fotos, músicas, confissões, estabelecendo os mais ansiosos e desesperados
contatos, e esse aparelho de tempos em tempos, de tão solicitado, cai
desastradamente no chão, mas sempre fica tudo bem.
Ele cai, às vezes solta a tampa de trás, a bateria escapa para
lugares insondáveis e você fica tateando o asfalto como quem procura a vida de
um grande amigo temporariamente inconsciente depois de uma queda. Você encontra,
e então ele está de volta, pronto para a próxima queda, já ativo no desespero
da próxima comunicação – atrasos, saudades, trânsito, dúvidas, súbitas
incompatibilidades de gênios.
Só que daí um dia, na centésima queda da altura da sua mão –
nem é a pior das quedas, é na verdade uma quedinha de nada, perto das tantas
outras, um esbarrão à toa, um deslize, nem mesmo cuspiu a bateria --, e quando
ele se ergue do chão vem o espanto diante de uma tela multifragmentada e áspera
que enfim não deve mais responder aos seus insistentes toques. E você olha a
tela desproporcionalmente estraçalhada e pensa que ela foi ingrata, mimada,
porque isso não precisava ocorrer justo hoje, com essa queda, se ela resistiu a
coisas tão piores, e de repente a ruptura parece um capricho, uma vaidade, justo num dia como esse.
Mas daí olhando pro seu telefone bem no fundo dos mil vidrinhos doloridos, você percebe que na verdade ele resistiu mais do que devia. E que muita coisa e muita gente resiste mais do que devia, tanta queda, chute, golpe, atropelo, e a tela intacta e leal mantendo os anseios das suas comunicações, até que um dia não tinha mais forças, e era bom que esse dia chegasse, porque não está certo ser derrubado displicentemente assim tantas vezes, e chega uma hora que se não quebra fica a dúvida de como serão as próximas quedas, o que é um jeito terrível de se viver.
Mas daí olhando pro seu telefone bem no fundo dos mil vidrinhos doloridos, você percebe que na verdade ele resistiu mais do que devia. E que muita coisa e muita gente resiste mais do que devia, tanta queda, chute, golpe, atropelo, e a tela intacta e leal mantendo os anseios das suas comunicações, até que um dia não tinha mais forças, e era bom que esse dia chegasse, porque não está certo ser derrubado displicentemente assim tantas vezes, e chega uma hora que se não quebra fica a dúvida de como serão as próximas quedas, o que é um jeito terrível de se viver.
Mas daí você está lá parado pensando tudo isso e fazendo planos sobre como tratar bem o seu futuro telefone, e passa a mão na tela, e assim, mesmo inacreditavelmente em pedaços, ela funciona, ela sorri.