Eu
nunca mais voltei naquele lugar e por isso a minha lembrança é de que era o
maior lugar do mundo. Minha mãe me puxava por uma ladeira enorme, fazia muito
sol e as pessoas na fila tinham todas muita pressa ou muito desânimo. As que
tinham desânimo parece que iam ali sempre, como que todo dia.
Já
fazia muito tempo que em casa ninguém me dizia nada, deixavam a televisão
ligada e se calavam, e eu já não perguntava dele e já eu mesma quase não
falava, e nem olhava mais a porta no horário da novela porque eu já tinha
entendido que ele não ia aparecer de repente. E nesse dia eu ainda não sabia se
queria ou não queria ir, mas não tinha ninguém pra ficar comigo tantas horas e
– Pega um brinquedo e vem, menina – eu puxei da cama um boneco qualquer que
tinha sido dele, e corri pro trem.
A
mãe continuava não dizendo nada e eu não perguntava porque pra todo o mundo
parecia mais fácil se eu simplesmente não estivesse percebendo. Como se eu não
tivesse reparado que meu irmão nunca mais voltou pra casa, nunca mais me trouxe
nada, nem me jogou pedaços de tomate durante o jantar, nem me escondeu no
armário na hora do banho, nem fez promessas, projetos grandiosos que ele me
contava depois de me sentar em cima da mesa da cozinha onde ele dizia que as
coisas eram levadas a sério. E naquele dia no lugar imenso minha mãe não tinha
nenhum alívio no rosto, mas por alguma razão eu tinha passado a noite
conversando com a lua e me dei toda a certeza de que ele ia voltar pra casa.
Eu
já sabia que ele tinha começado a vender droga, e que tudo tinha dado errado.
Mas eu sabia também que isso um monte de moleque fazia ali no bairro e eu
sentia que naquela tarde ele ia pedir desculpas a quem quer que fosse que ele
tinha desobedecido, e ia ficar tudo bem.
Quando
a gente entrou, eu me lembro do frio, um frio sem sentido que era como se o sol
nunca chegasse ali. Fiz que o boneco voava pelos corredores, mas fiz só pra
minha mãe achar que eu estava feliz com o passeio, mas era difícil fingir
porque minha cabeça ficava bem na altura das algemas dos homens que toda hora
passavam puxados por guardas gigantes, os rostos baixos, a roupa igual, e eu a
todo tempo num susto achando que qualquer deles podia ser o meu irmão – e era; qualquer
um.
E
os homens nas algemas estavam todos de chinelo e eu lembro que achei aquilo
muito estranho porque chinelo é uma coisa tão livre. Ficava olhando passarem
tantos pés soltos em havaianas puídas
e aqueles pés me lembravam de praça, churrasco, pipa, rua, demarcação de gol de
futebol. Depois pensei que a gente usava tanto chinelo porque sapato é muito
mais caro, mas aí logo em seguida pensei que ainda assim – e talvez por isso
mesmo – chinelo fosse uma coisa tão livre.
A
gente sentou finalmente e esperou por um tempo que me pareceu muitos dias.
Minha mãe não falava comigo a não ser pra me dar um suco ou uma bolacha seca,
mas de vez em quando falava com outra mãe, qualquer coisa sobre Deus, ou sobre injustiça
– só que por alguma razão minha mãe não parecia achar nada daquilo injusto, e acho
que isso é o que mais doía nela. E de repente ouvi uma senhora comentar algo
que jamais tinha passado pela minha cabeça – O meu filho já é a terceira vez! –
e nessa hora eu pensei que então dali pra frente seria sempre assim. Eu percebi
que os rapazes uma hora crescem, e vão presos, e depois vão presos de novo, e
pela terceira vez, e que era essa a sina dos nossos homens, como num país que
entrega todos os seus meninos à guerra.
Durante
toda a tarde minha mãe seguia com os olhos uma mulher apressada, de salto alto,
que quase nunca parava em nós, e não olhava pra minha mãe porque sabia que ela
estava esperando alguma notícia, e aí eu fui percebendo que de fato era sempre
assim pra todo o mundo, tanto que a mulher vinha e dava a notícia para as
outras mães, que já sabiam como as coisas eram, e saíam, como quem recebe uma
hóstia e volta pra casa pra lavar roupa. E depois da notícia a mulher entrava numa
sala em que as pessoas corriam, ou às vezes riam de quaisquer coisas, e quanto
mais elas riam mais eu me convencia de que aquela era a ordem natural, de que
os irmãos crescem pra serem presos uma, duas, três, intermináveis vezes.
Eu
girava o boneco como se ele fosse um trapezista porque eu sabia que estava
chegando a hora e era cada vez mais importante que eu não estivesse entendendo
nada, e eu pensei bem forte que se eu rodasse o boneco exatamente 18 vezes – a idade
do meu irmão – antes de a mulher começar a falar com a minha mãe, a notícia
seria boa.
E
eu comecei a rodar primeiro devagar porque pensei que ela ia demorar, mas ela
foi chegando com a mesma cara que ela fez toda vez que tinha uma notícia, e eu
rodei o boneco mais rápido, e mais rápido, mas ela já começou a falar com a
minha mãe sem nem olhar pra mim e não deu tempo de eu rodar o boneco 18 vezes –
e é capaz que até hoje eu me culpe por isso –, mas eu continuei rodando o
boneco porque era importante que eu não estivesse entendendo nada – Nós fizemos
tudo o que foi possível --, era fundamental pra minha mãe que eu não entendesse
– Mas não significa que ele vai ficar preso os próximos cinco anos
inteiros –, na verdade era absolutamente
necessário pra mim que eu não estivesse entendendo nada e como eu rodava o
boneco como se não estivesse prestando a menor atenção de vez em quando a
mulher de salto olhava pra mim e eu sei que eu tentei segurar o choro mas ele
veio assim, silencioso, implacável --A senhora precisa voltar daqui a dois anos
pra pedir... – e então ela me olhou de novo e acho que parou um pouco de falar,
e eu percebi que até mesmo pra ela era preciso que eu não estivesse entendendo
nada.
Minha
mãe, que até aquele momento apenas assentia com a cabeça, também olhou pra mim,
e eu senti que ela e a mulher de salto olhavam meu choro, e eu rodei mais
rápido o boneco só que agora não adiantava mais rodar boneco nenhum.
Eu
cresci uns vinte anos naquela tarde, e cresci sem meu irmão, que morreu nove
anos depois, recém-saído da terceira cadeia. Eu disse que nunca mais voltei
naquele lugar, mas na verdade eu nunca mais saí de lá. Ficamos pra sempre presos
– eu, e também minha mãe, e a mulher de salto, que não deveriam nunca ter me
visto chorar.