(foto por Jim http://www.unprofound.com/viewpic.php?pic=abandoned.jpg&photographer=jim)
Chamo
uma senha e ela que lacrimejava discreta na fila senta na minha frente e inicia
um choro infantil e inconsolável que atabalhoa o relato já excessivamente
minucioso e meândrico. Como se ela tivesse decorado o número da senha e
aguardado por horas até que algum atendente o chamasse e seria nesse momento
que encararia de frente o seu desespero. Na fila talvez ela tentasse se
distrair com os assuntos das outras mulheres, seus divórcios, suas casas,
contratos, vizinhos, suas fomes, suas crianças sem pai nem nome, ela tentando
escutar as explicações nas mesas e pensando que talvez seu problema não caiba
nesse lugar; ninguém parece ter os olhos assim tão sem repouso, todos ali estão
cheios de razão na luta por um direito que agora ela parece que precisa rechear
de volteios e epígrafes pra me convencer, e a si mesma, de que é de fato
seu.
Ela
sentada sem de todo chegar a sentar bem na minha frente e seus brados
sobressaem entre os tantos atendimentos quase pacatos, resignados, e ela diz
que não tem culpa, mas quanto mais repete mais eu sei que tem toda a culpa do
mundo e eu quero que ela saiba que eu não me importo com isso, que dali em
diante eu lhe dou toda a razão e que de qualquer forma ela não precisa da minha
razão, mas não consigo dizer porque estou paralisada imaginando que talvez eu
não possa fazer nada por ela.
Como
ela se detém em cada passo anterior ao trágico incidente, fantasio a hipótese
do problema ao longo dos detalhes, feito um médico eliminando diagnósticos na
sequência de sintomas, Eu avisei minha mãe que ia sair, mas teve um
problema de comunicação -- e então ela retoma de outra forma a mesma passagem
como se tivesse ensaiado muitas vezes dentro da cabeça e agora não perdoasse o
mínimo deslize --, E eu tinha emprestado o celular para o meu irmão e ele
trocou o chip e por isso eu não recebia ligações. Por uns instantes ela quase
me convence de que uma confluência de fatalidades gerou O Problema, mas no meio
do choro convulsivo percebo uma dor infantil de quem não esperava que as coisas
um dia fossem chegar a esse ponto -- ou pior, esperava --, e ela que era uma menina foi
ficando cada vez mais nova a ponto de eu ficar cada vez mais velha, e maternal.
Ela
conta que se arrumava pra sair e sua mãe perguntou "Você vai
lá?", e ela respondeu que ia lá porque achou que "lá" seria
"sair", mas a mãe entendeu errado. Imagino
a menina se arrumando para sair, para "ir lá", o batom
rápido no espelho, o mau humor diante da pergunta da mãe que para ela
é evidentemente uma censura, e ela amassa os cachos molhados e grudados de um
creme frutado, as tiras da sandália já doendo nos dedos, a unha deve ser
azul-claro com brilhos, e pega a bolsa e bate a porta e vai descendo as escadas
de um edifício barulhento e escuro, várias famílias acampadas pelos corredores,
até chegar na avenida onde muito tempo depois passa um ônibus que a traz de
volta às cinco da manhã, sem celular, sem casaco, bêbada, solitária, suja, para
dar de cara com a mãe incrédula a perguntar: "Cadê o
bebê?"
E
repete para mim várias vezes essa parte, Cadê o bebê?! E explica que
ela tinha dito para a mãe mil vezes que ia sair e que era para ela
buscar o bebê na creche, mas quando a mãe disse "Você vai
lá?" e ela respondeu impaciente que "sim", já cortando o
assunto, o trato se desfez e ninguém buscou o bebê em creche alguma. Imagino as
famílias nos corredores do edifício se avolumando em volta da moça, os olhares,
os gritos às cinco da manhã, ela que já era indesejada no local com o bebê que
chora e essas baladas, madrugadas, brigas. Fico pensando se quando ela saiu pra
dançar ela cruzou na escada com alguma criança mordendo um brinquedo e pensou
no filho e teve medo de que a mãe não tivesse entendido, mas pensou
também que subir e esclarecer seria trazer à tona novas brigas,
a mãe diria que não ia buscar criança nenhuma, que o filho é dela, e
então isso seria um fato, não seria um mal entendido, ela teria de deixar de
buscar porque quis, e então era melhor continuar descendo as escadas protegida
na ideia de que o filho estaria magicamente em casa quando ela chegasse, ou
quem sabe se não estivesse isso seria um problema para resolver de manhã.
Talvez
ela me veja sentada atrás dessa mesa como espécie de anjo, heroína, com um
computador mágico onde digito o nome da criança e descubro no sistema onde ela
está, mas começo a fazer perguntas sobre os lugares em que ela pode ter procurado
e ela chora mais, ela própria uma criança frustrada diante da única solução que
tinha planejado a manhã inteira naquela fila: eu. Ela não tem onde pôr os
olhos, nem os braços, e já não liga que todos escutem o seu desleixo, a sua
falha, a sua noitada maldita, Cadê o bebê? Cadê o bebê? Ela pergunta alto e
chora e talvez dessa vez a pergunta seja pra mim e faço ligações, muitas
ligações e continuo sem saber cadê o bebê.
Pela
quarta vez conto a história ao telefone e anoto algum outro número, outro Conselho
Tutelar, e a palavra Conselho parece reverberar na cabeça da moça,
pensando que precisa de conselhos, muitos conselhos, e eu lembro que ela deve
estar sem dormir há muitas e muitas horas, talvez ainda esteja bêbada, e penso
também que tenho um milhão de pessoas para atender que talvez só precisem
agendar um divórcio rápido e o tempo está correndo. Ela vai escutando eu contar
e recontar a história que na verdade é a história dela e sinto um olhar de
cumplicidade quando ela percebe que eu floreio os fatos para mitigar toda a
culpa, E o irmão trocou o chip...
Quando
finalmente o conselheiro certo atende o celular é com revolta
descontrolada que ele grita que essa criança não volta mais, que se
depender dele não volta, e eu tento não alterar o tom de voz porque
a menina com os olhinhos vidrados em mim tentando adivinhar a
notícia, Mas o irmão trocou o chip e. O conselheiro parece estar no
meio do barulho de muitos ônibus e até sua voz é suada de sol e multidão, e por
ele fico sabendo que essa mãe -- é assim que ele a
chama, essa mãe -- não mora mais na invasão onde morava e ele
passou a manhã inteira procurando por ela. A menina tira da bolsa um
papelzinho amassado com o endereço e diz que teve de mudar de invasão, e eu
imagino de novo a sua expulsão, baladas, brigas, bebês, depois penso que talvez
não fosse balada nenhuma, que a menina "ia lá" trabalhar,
madrugada inteira, homens, os mais variados homens, embora quase todos iguais,
em cima dela, essa mãe, essa menina com esse filho,
Cadê o bebê, que não sei se veio do trabalho dela, não sei se valeu cinquenta,
setenta reais, ou se foi de um amor qualquer desses jovens que desaparecem,
esse pai, ela maquiando o olho num espelho quebrado, as famílias circulando
pelos corredores, ela pendura na janela o vestido da noite anterior pra aliviar
o cheiro de cigarro e volta às cinco da manhã rasgada, suada, sozinha demais,
algum dinheiro no bolso da saia jeans, vários lances de escada até chegar no
seu cantinho, Cadê o bebê, como se ela não tivesse imaginado que seria assim,
como se esse bebê não fosse metade dela e metade do mundo que ela queria que
ajudasse a criar, os bebês deveriam ser de todos, e agora ela aqui querendo de
volta, Mas o senhor não imagina a fila que ela pegou pra falar comigo, e
o conselheiro insiste que vai entregar para o judiciário, Cadê o
bebê, e o bebê está em algum lugar na Avenida Sapopemba, mas não adianta correr
lá, essa mãe, Mas senhor é só uma menina, Essa mãe.
Ao
fim consigo que espere exatamente onde está porque ela vai encontrar com ele
para conversar, ela vai agora, correndo, faço um desenho no mapa, é perto, mas
ela demora a entender, chora e me agradece, como se alguma coisa estivesse
resolvida, a confusão do sono, os braços segurando a bolsa em concha como se já
fosse o filho, quer me abraçar mas eu não abro o braço e ela não solta a bolsa,
tento apressá-la e ela não vai, explico que talvez não seja tão simples, mas
que pode ser que as coisas mudem. Que hoje todas as coisas tenham que mudar, e
que pode ser bom, que é tempo de repensar tudo, depois vejo que eu não sei de
nada, que ela já viveu e pensou todas as coisas do
mundo, essa menina, essa mãe, ela vai correndo e eu demoro
a entender o que quer o próximo da fila, uma mulher larga e séria, e quando
finalmente a olho nos olhos ela balança a cabeça indignada, Que absurdo largar
o filho assim, essa mãe.
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