É que tantos anos depois ainda é
fundamental saber sempe, o tempo todo, onde é que estão seus pais. Esses pais que embora não o
alimentem com as mãos, ainda cuidam dos seus dias porque a falta que fizeram no momento em que ele não entendia nada fez com que não entendesse nem suportasse mais uma
porção de coisas. Por mais que ele saiba ir e saiba voltar é impossível sair,
décadas e décadas evitando as ruas com seus olhares, ruídos, uniformes, é
preciso até hoje que ele feche as janelas, que não seja visto, é preciso que
ninguém se incomode com o seu choro.
Porque entraram derrubando a
porta como entram derrubando ainda as portas de tantas casas e ele chorou de
susto e depois de fome e talvez esse choro tenha despertado o primeiro golpe, o
primeiro arremesso da criança no chão, a cabeça no baque seco, o lábio aberto,
e ainda mais choro porque era impossível compreender por quê. E naquele dia a
criança subversivamente intolerável, perigosa, gritou, fritou, doeu inteira na
rede elétrica, nos impulsos, volts, amperes – risadas? --, e no meio de tudo o
barulho do trem na Estação da Luz que passava e voltava tantas vezes sem levá-lo
dali, sem trazer ninguém, o barulho de um trem que parecia dentro dele, nas
veias, no sangue, nos dedinhos chamuscados de choque.
E depois a criança ainda sem
entender, a perguntar à mãe que trem é esse passando tantas vezes dentro da cabeça,
que vagões são esses tão perto, que não cansam nem chegam ao destino, que trilhos
podem estar assim tão fundo dentro dos ouvidos. E depois a criança cada vez
entendendo mais e encontrando o diário dos pais, aprendendo os desenhos,
palavras da sua história, prisão, tortura, choro, medo, a criança lendo e sentindo
mais claras as dores, os ruídos, os pavores. Porque até hoje o coração de
repente disparando em correntes elétricas inexistentes, baques, sustos, o
coração sempre pronto para o pânico.
Porque até hoje ele não teve vida
que não fosse um choque, não teve prazer que não fosse pra ele mesmo clandestino,
até hoje não teve sequer um silêncio que não fosse um calabouço de ecos nos
labirintos do ouvido, por tudo isso ele precisa de muitos remédios. Mais remédios do que pode
o próprio corpo suportar, remédios para memória, para o silêncio.
Remédios para esquecer finalmente
tudo o que a sua pátria se nega a lembrar. Remédios para talvez tirar do
silêncio – este silêncio que ele nunca conheceu – os nomes que seu país insiste em
calar.
Descanse, enfim, Carlos Alexandre
Azevedo, que por você não descansaremos.