quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ali vem o homem com sua grande dor



 Pelos lugares de sempre aquelas mesmas pessoas  hoje num súbito respeito, num baixar de olhos, de tom de voz, amenizando os toques, os assuntos, fiscalizando o excesso de risadas, tudo porque eu tenho uma dor. Ali vem o homem com sua grande dor! Sou muito mais sólido, barroco, velho e importante porque tenho uma dor, uma dor notável, uma dor que no meio do embaraço tenta ser digníssima. Já não é uma dor de final de romancezinho, de um qualquer desencontro ou saudade carnal que uns quantos meses lavam. Nos mesmos lugares todas aquelas pessoas que se estivessem em outros séculos me tirariam os chapéus com algum incômodo pela minha chegada como se eu trouxesse comigo todo o permanente impacto da minha dor. 
É que eu tenho uma dor que é um escândalo, uma brutalidade, que ao mesmo tempo em que tira tantos respeitosos chapéus à minha volta é também uma dor de escárnio, de deboche, uma dor de instintos. Eu sinto dor em todos os meus instintos e não é possível que alguém de fato respeite uma dor que inflama o animal em mim, o que houver de sangue, de pêlo, de cheiro, buracos, abraços, avessos, eu sou essa dor que expõe os nervos como eu fosse um leão a fracassar todos os truques no picadeiro -- ouço até mesmo as crianças rindo de mim, e quem foi mesmo que fez esse leão assim tão inofensivo e triste. 
Não podem ser de respeito esses olhares diante de uma dor tão selvagem, mas também não são de piedade, que piedade precisa de um diminutivo, e eu sou um homem gigante, até mesmo meu nome denota tamanho, ninguém nunca pôde juntar piedade e meu nome numa mesma frase, num mesmo olhar. Durante o seu enterro minha concentração não era em compreender esse novo olhar que eu de repente passei a despertar ao redor de mim, era apenas em domesticar a minha dor. Você ali tão indecentemente morta e eu lutando pra afastar da minha quase bonita dor as rebarbas mundanas dessa morte monstra, que vem me dar ganas de leão, cadela, fera embriagada da solidão de um luto ilegítimo. 
Ele nunca me roubou você, ele roubou muito mais, talvez o direito de matar você, direito de ser eu a matar você. Talvez a essa altura da vida eu achasse que se você fosse morrer de uma morte dessas passionais, televisivas, midiáticas, seria pelas minhas mãos, as mãos de quem as gentes todas achavam fosse seu amor. E acontece também que eu já tinha decidido -- talvez antes mesmo de nascer -- que você (quem sabe ninguém no mundo) jamais morreria desse tipo de morte egoísta, tempestuosa, e a pergunta que talvez esteja nos olhos de todos esses chapéus baixando à minha volta é porque diabos (se eu exterminei da sua vida qualquer possibilidade dessa morte trágica) você foi buscá-la nos braços de um mal-resolvido qualquer, por que será que a mim foi negado até mesmo o direito de não perder o meu amor num homicídio passional. 
Você, que morreu pela paixão de outro, e não pela minha, porque a minha não matava, não doía, não negava nem cobrava, você deixou essa pergunta que faz com que os chapéus se baixem diante deste luto maldito, porque é um luto que não sabe se você merece a dignidade desta dor, se você estaria chorando diante de um túmulo meu. Você que saiu de repente da minha vida como quem vai comprar cigarros e resolve morrer assassinada por quem jamais teve o direito de dizer-se sequer apaixonado por você -- será que ele sabia do seu absurdo e inacreditável medo de altura? --, você me deixou de uma forma que não posso sequer perguntar por quê, há quanto tempo, e o que será que um homem que foi capaz de matá-la em razão de algum desespero que você provocou nele, o que será que esse homem um dia lhe deu, que feitiço, que alumbramento, que encanto homicida tinha esse rapaz pra que você me deixasse na mágoa desconsolada da sua mortalha sem flores. 
Não te trago flores porque já não sei nem se minha visita é por você bem-vinda, ninguém lhe traz flores porque a todos acomete a sensação de que talvez você não gostasse daqueles a quem dizia que amava. Ele nos roubou o direito ao luto, porque amar sozinho, mesmo a uma morta, é insuportável, e eu não lhe trago flores porque seria mostrar a você e ao mundo que a sua morte me encerra num amor para sempre não correspondido. E eu deixo você aí sozinha -- embora isso também me doa -- e sigo chamando a atenção de todos com essa minha dor incrédula, pensando, sonhando, quem sabe talvez, que a sua morte tenha vindo logo depois que você, aos prantos, de repente sã, bradou que me amava, que não me deixava, que morria por mim.