quarta-feira, 7 de março de 2012

A queda

    
    Vinte e duas pessoas, ela contou, vinte e duas pessoas, talvez vinte e três porque no meio da contagem ficou com dúvida e optou pelo número menor. Vinte e duas pessoas passaram pela entrada do prédio nas últimas exatas três horas, talvez algumas tenham se repetido, mas isso ela não tinha como saber, seria necessário método, anotação.
    A varanda no décimo primeiro andar deixava ver a portaria e se ela sentasse e colocasse as pernas entre as grades, e esticasse os pés pra fora no ângulo exato – não precisava nem tapar um dos olhos – o portão de entrada podia ficar totalmente encoberto. Então era possível mantê-lo assim até que o barulho distante do portão se abrindo – tudo o mais era o silêncio – anunciasse a entrada de alguém, e no instante exato ela abria os pés e deixava a pessoa passar, como se fosse essa a dinâmica inevitável dos fatos, como se, sem a sua guarda atenta, ninguém entrasse nem saísse do prédio.
    Assim, pendentes para fora da varanda, seus pés finalmente deixavam de encostar o chão. Em todas as cadeiras – na escola, na perua, nos restaurantes –, sempre que se sentava, os pés tocavam implacavelmente o chão, na estabilidade injusta de um tamanho que nenhum dos colegas tinha, todos tão devidamente pequenos, os pezinhos balançando livres, inspirando a proteção e a ternura dos adultos. Os pés de todos os outros no balanço de uma infância do tamanho certo.
    E ela pensava que talvez saltar da varanda com um guarda chuva pudesse potencializar ao máximo os pés flutuantes: mesmo ela, tão grande, ocupando sempre um espaço impertinente – desproporcional à idade, à vontade de correr, de não saber das coisas – mesmo ela tão larga e tão comprida teria muitos segundos pra ocupar todo o espaço entre a varanda e a portaria, sem qualquer chão sob os pés. Seria só segurar bem firme o guarda-chuva – talvez fosse melhor prendê-lo à roupa – e saltar, descer lentamente do céu com os pés numa invisível bicicleta de vento.
    Se alguma coisa desse errado o máximo que ia acontecer é que uma infinidade de crianças que nunca falaram direito com ela viriam ao enterro, assustadas, ou mesmo entretidas, e os jornalistas talvez comentassem que não tinha sido uma atitude muito esperta, mas depois explicariam que, apesar do tamanho, ela ainda era uma menina, era uma criança tão pequena.
    Às vezes, também, quando faltava muito tempo para chegar o dia do seu aniversário, a espera pelo grande evento, pela consagração de todas as atenções era tão lenta e devastadora que ela pensava em pular sem o guarda-chuva. Eram meses longos de mais prostrada naquela varanda, acumulando vertigem nos olhos, no estômago, nos pés que de sempre tão pesados no chão só queriam o descontrole da queda.
    Mas a varanda tinha uma fina tela de proteção envelhecida e úmida, em que ela apoiava a testa e depois erguia o rosto quadriculado da rede. Ela chegou a cortar alguns quadrados da lateral, e não teve coragem de cortar mais. A mãe perguntou o que era aquele rombo e ela respondeu que devia de ter rasgado com o tempo e nunca ninguém falou nisso porque se fosse o caso de se falar de fato nisso seriam coisas incrivelmente difíceis de serem ditas, e, apesar do tamanho, ela era uma criança.
   Hoje já não há tempo para contar pessoas na portaria e os aniversários chegam mais rápido que o esperado, e já nem trazem tantas atenções. A vertigem engolida dia-a-dia no décimo primeiro andar de um prédio insuportavelmente branco e silencioso ainda insiste em arremessá-la por todos os buracos da vida, sem tela de proteção envelhecida ou guarda-chuva.
    E agora, justo agora que todo o mundo alcança e apoia bem firmes os pés no chão, não há meios de curar-lhe a infinita queda.