segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Gata


A casa ficava escura e terrivelmente quieta quando eu tomava coragem de apagar o abajur e esperar ansiosa o tique-tique das unhas na madeira do chão, nas escadas, depois a patinha empurrando de leve a porta. A gata toda preta e a luz da rua só deixava luminosos os olhos dourados de lince. Era impossível saber quando ela vinha.
Quando ela entrava no quarto eu parava a respiração, o menor gesto e ela podia desistir. Vinha toda melindrosa, esboçando pouca ou nenhuma vontade de ficar. E mesmo sem vê-la – porque olhá-la nos olhos certamente a faria saltar da cama sem qualquer suspense --, mesmo de costas, imóvel, eu sentia as patas firmes dando voltas no edredom e logo eu podia ouvir o sono leve que qualquer tremor no colchão poderia despertar.
Sempre que ela vinha, eu dormia doída em cima do mesmo braço, mas cheia de orgulho, plena de uma companhia sobrenatural, inexplicável, e passava a noite sonhando que de manhã quando eu me virasse, mesmo com todo o sol da janela, ela ainda estaria comigo, e quem sabe abrisse os olhos junto com os meus e erguesse o rabo e as orelhas num bom-dia suave e quase afetivo. Ela nunca estava ali quando amanhecia.
A noite toda acordando aflita, com frio, sem querer puxar demais o cobertor, olhando de leve para o outro lado, conferindo a presença volátil que por algumas horas me tirava do meu completo desamparo. Às vezes eu apagava a luz e tanto tempo passava sem que as patinhas na escada, na porta, na cama, e eu me perguntava se ela tinha preferido o sofá da sala, os tapetes, eu sabia que quando ela vinha era porque tinha simplesmente preferido a cama, eu talvez não tivesse nada a ver com isso. E mesmo com tantos anos de confiança eu mantinha o rosto para o outro lado, a sensação iminente das unhas imprevisíveis num golpe súbito. 
Toda noite ainda hoje a mesma inquietude, tanta gente que vem e eu doída na contração do sono tenso, ao menor gesto as pessoas acordam, as pessoas percebem, elas notam o sol nas frestas da janela, talvez prefiram sofás, salas, outras camas, hoje quando ela vem eu já não sei se devo ou não devo olhar nos olhos, segurar os pulsos, a cintura, contenho os gestos, os sons, é preciso mantê-la confortável, é preciso esconder os relógios, as vozes, não se pode deixar que lhe falte nada, que nenhum movimento a contrarie, porque é sempre de repente que ela salta da cama e o tique-tique das sapatilhas nas escadas, nas chaves, e o meu abandono de todas as noites esperando que ela venha, que ela fique, que ela finalmente espere até poder dizer um bom-dia suave e quase afetivo. É impossível saber quando ela vem.

Um comentário:

Daniel disse...

As minhas eu posso encarar, roncar, deitar em cima, e acho que até jogar água, que quando elas conseguem entrar no quarto, e mais ainda, subir na cama, o difícil é tirá-las de lá...