sexta-feira, 24 de julho de 2009

Melhor amigo (para ler teatral-histericamente)

Lorde, olha pra mim, Lorde, não é possível que você não me escute nunca. Eu não consigo entender, cachorro, o que foi que eu te fiz, não consigo. As pessoas dão risada mas quando eu paro pra pensar tudo isso é muito sério, tudo isso dói, você me dói, Lorde. Não acredito que você não tenha pena, os cachorros costumam ter pelo menos um pouco de piedade. Olha pra mim! Animal sádico.
Não finge que não está me ouvindo, sua bola peluda, seu monstrinho, agora vai ser assim aqui nessa casa, vou tratar você como merece... Continua me ignorando, o bichinho. Não, Lorde, é sério mesmo, vem aqui olhar pra mim quando falo. Você vai viver mais o quê? Uns dez anos! Dez anos com esse cachorro, um estranho dentro da minha casa.
Mais dez anos do seu lado passeando na calçada sem que você seja capaz de um bom-dia, uma lambida, uma orelha erguida que seja. Escuta, Lorde, o mundo se divide em pessoas que compram gatos e pessoas que precisam de cachorros. Eu procurei um cachorro, você entende? E eu não sei o que querem de mim com essa tortura, eu precisei de um cachorro, mas você parece um cretino de um gato que vai passar dez anos na minha casa sem cruzar os olhos nos meus. Os gatos pelo menos encaram, erguem o rabo assustadores. Olha pra mim, pelo amor de deus!
O que querem de mim? O que foi que eu fiz, eu nunca ergui um dedo contra você! Se eu estivesse sozinha, sozinha é diferente. A gente chega em casa exausta, esquenta a janta, toma uma ducha, dia-sim-dia-não liga a tevê. Mas eu, eu abro a porta da sala e vejo você no fim do corredor, e não é capaz de abanar um segundo a porra do rabo! Estático, casmurro, pedante. Eu detesto você, Lorde, você não tem o direito de fazer isso comigo!
Quantos meses você ainda vai passar com o focinho embaixo dessa porta? Ele não volta, cachorro, aceita isso! Escuta, ele não volta! Que coisa, o homem chegava tarde da noite, fazia um afago distraído na sua cabeça e reclamava de deitar você naquela barriga enorme, porque você espera nessa maldita porta?!
Eu devo ser insuportável mesmo. Dez anos assim, meu deus. E se eu te achar morto no meio da casa um dia, hein? Vai ser que nem achar uma mariposa, viva ou morta, tanto faz. Só vou tirar você dali e esquentar a comida, vai ser assim, Lorde? E se um dia você me achar morta, hein? Vai ser capaz de dar um mísero latido pra chamar o vizinho?
E à noite? E à noite, Lorde? Eu não suporto mais as noites. Termina o filme e eu saio do quarto devagar, silenciosa, sempre com a esperança de que vou encontrar você feliz trazendo um brinquedinho, de que você veio fazer amizade, veio roçar o nariz no dorso da minha mão e pedir colo com manhas de cachorrinho. Depois eu finjo pra mim que não me importo e busco água na cozinha. No caminho, sua respiraçãozinha agitada e esses olhinhos vidrados na porta da sala, ele não volta, pelo amor de deus, entende isso e vem dormir aqui dentro. Olha só, Lorde, eu forrei sua caminha bem quente, olha o ossinho, Lorde! Olha essa porcaria de ossinho!

4 comentários:

lucas fábio disse...

tenho a impressão ou esse posto é levemente baseado em personagens reais?

Mari Carrara disse...

apenas levemente. surgiu de uma emocionante discussão que tive hoje com a lisbela. Mas diferentemente do Lorde, ela veio até mim, meio em pânico. E eu tinha lágrimas nos olhos.

n disse...

Identifico!

Ibiaçu Caetano disse...

mocinha mais talentosa!