Entre as nossas varandas
De vez em quando aparecia e olhava a rua com os cotovelos no parapeito, e me sorria por cima do biombo entre as nossas varandas. Ou às vezes sentava com as pernas abertas na banqueta e pintava as unhas do pé em dez segundos e depois ficava olhando o céu com os dedinhos em garra até secar o esmalte – eu via por baixo do biombo. Por entre os ramos da trepadeira que crescia desgovernada entre as nossas varandas, chegou um dia a me passar um bombom recheado de leite condensado.
Eu já não sabia do Júlio, resolvia seus assuntos na língua maluca em reuniões suspeitas e o sol na sacada só me fazia pensar no sol da minha casa. A casa que já não era minha porque agora o Júlio a minha casa em qualquer canto do mundo em que o colocassem -- eles tiram a gente do globo como uma mão gigante mexendo pecinhas num tabuleiro, vim empacar nessa varanda. E já faz tempo demais que ninguém joga esses dados.
Quando a gente chegou não vou dizer que tinha um brilho jovial nos olhos do casamento, não, olhos cansados, antes de falar com o porteiro ele apoiou a mão peluda na minha barriga, como se o filho quem estivesse nervoso, o filho que estivesse vendo os milhões de tijolinhos cor-de-rosa e as mil varandinhas lado a lado e empilhadas em vinte andares floridos e consumidos de trepadeiras e samambaias, Júlio, essas varandas!
Não, não tinha privacidade alguma, mas fui aprendendo a gostar da moça misteriosa que me dava doces através do biombo e que não falava mas se falasse seria na língua enrolada, usava um chapéu gigante que fazia sombra até a ponta dos seios, o tempo todo um animal no colo que eu pensava que era um cachorro mas que só podia ser um gato, o rabo tenso no ar, a serenidade. O Júlio chegou no meio da tarde depois de um telefonema arfante e me levou aos prantos, o hospital e sua língua enrolada, o filho num paninho e um médico explicando coisas que só o Júlio entendia e eu codificava pelos gestos e chorava imaginando a varanda vazia muitos mais anos e o Júlio que nunca mais pousou a mão peluda na minha barriga.
No dia seguinte eu era um balão estourado esquecido vazio em algum canto da festa. A moça passou as duas mãos pelo biombo e eu senti que chorava mas as lágrimas em algum lugar atrás das folhas da trepadeira, só o sorriso angelical nas frestas entre as folhas. As duas mãos quentes me acariciando a barriga inchada de líquidos e ares de morte, qualquer coisa de maternal naquelas unhas cortadas bem rentes me aquecendo o ventre com um sorriso que inspirava um beijo que o biombo impedia, uma das poucas coisas que o biombo impedia.
Naquela tarde me deu outro bombom recheado e riu quando eu babei o leite condensado e limpei a boca na manga do vestido, riu do jeito que a minha mãe ria escondido do meu pai que achava um absurdo essa de limpar a boca na roupa. Riu de um jeito que o Júlio nunca riu, e disse alguma coisa na língua enrolada, alguma coisa que eu fiquei escutando de novo e de novo dentro da minha cabeça, parecia uma amargura, uma maldade dita numa voz doce, uma palavra a ser repetida mil vezes num ritual colorido de tambores e sei mais o quê que faz esse povo com seus chocalhos e incensos.
Então, bem devagar, feito uma oferenda a Iemanjá voltando à praia de onda em onda, num olhar incompreensível de compaixão, foi empurrando por baixo do biombo o gato mole, a língua enrolada, enforcado num cordão de chupeta.