terça-feira, 6 de maio de 2008

A mureta



No chão uma toalha branca gigante com queimaduras de ferro e cigarro, as bordas com estampas de patos e flores num pedacico de lagoa. Em cima da toalha o colorido das mercadorias que ele anuncia numa rima insistente, o preço em giz de cera num papelão.
−Olha só, Clarinha, esse daqui é fantástico.
Clarinha sentada à princesa na ponta da toalha, as mãos no colo tapando o buraco da saia. Ele desfila um cortador de unhas que pode virar também um canivete ou um chaveiro. Depois é um cinto de tranças de couro sintético roxo que ele tenta lhe vestir na cintura e ela repele numa risada tímida.
−Olha esse aqui, esse não é do Paraguai, esse eu mesmo faço. Se quiser, eu faço um pra você, Clarinha.
A praça com suas poças espirrando barrentas e a menina num auto-abraço e baforadas de frio, um cachecol marrom que ele lhe enrosca lentamente no pescoço gelado, um beijo estalado no rosto que ela desvia enquanto um gorro da mesma cor
−Pra esquentar essas orelhinhas
e também para abaixar a cabeleira esvoaçando obscena no meio da praça. O vento mais forte e ele segura os cartões de Dia das Mães com seus impulsos de vôo, as asinhas de cartolina num abrir sutil que de repente uma fuga de poça em poça vento afora.
−Também um frio desses e você com essa saiazinha.
Um homem abaixa a gravata até o isqueiro chinês e compra às pressas quase sem parar o passo, some na escada do metrô sem esperar as moedas do troco.
−Esse daqui, olha, é uma beleza de ouvir música no banheiro. Você entra no seu banhozinho e deixa ali na pia, olha só, sintoniza rapidinho. Dá pra ouvir até as letras!
Ela mexendo no rádio calada e depois o rádio encostado no ouvido porque a gritaria da praça, os vendedores com as suas rimas, mendigos, sirenes, barulho demais e o radiozito no ouvido cantando alguma paixão de dar água na boca.
−É tudo isso meu, você pode pegar o que quiser, Clarinha. Tudo tudo tudo.
De repente a correria dos ambulantes com suas tábuas e chocolates e despertadores, a fuga para dentro da Catedral, atrás das árvores, embaixo dos caixotes do moço da reciclagem. A toalha se dobrando em trouxa num puxão, Clara que não percebe a pressa e se demora a levantar e ele a puxar na outra ponta, os alicates pelo chão, calculadoras.
−Vem menina, o rapa! Olha os guarda tudo vindo ali!
Ela guardando o rádio na bolsa antes que
−É tudo isso meu, seu guarda, não estou vendendo nada, não, senhor.
e agora a toalha em trouxa sacolejando e molhando no espirrar das poças e os dois de cócoras atrás da mureta num abraço mais apertado de modo a não escapar às vistas um tico de sapato ou quem sabe uma ponta de toalha com um urso de pelúcia e uma capa de celular.
−Aperta mais, Clarinha, tudo tudo tudo meu, você vai ficar com o que você quiser.
Ela cansada cedendo ao colo, ao lábio dele respirando quente e rápido entre o gorro e o cachecol dela.
−Não liga, não, Clarinha, eles fazem isso é pra gente ter um instantinho de intimidade mesmo.

2 comentários:

lucas fábio disse...

Lindinha, tem que fazer um marketing desse Blog novo!

Esse texto é dos que mais me comoveu nos últimos meses...

Eu te amo.

Anônimo disse...

Como é que se senta à princesa...

Alex Menezes.