Brumadinho
tinha um monte de cachorro, porque as pessoas tinham as suas vidas e
tinham os seus cachorros, e alguns deles foram salvos, então vamos
supor que você e eu adotamos um cachorro que foi resgatado ali, nós
estamos esperando que ele chegue de Minas Gerais, parte dos pelos por
enquanto ele não tem, a lama arrancou, a outra parte está nas
orelinhas tremelicando nos fundos do caminhão da Ong. Depois de
muito tempo vendo o mesmo chão e ouvindo a mesma lataria ele dorme,
porque é assim que funciona, mas o sono já não é o mesmo.
Ele
sobe pelo elevador com você e eu abro a porta e o felicito
muitíssimo, testo todas as minhas vozes que indicam alegria, mas ele
entra degavar, sente o nosso chão gelado, que é tão firme. Procura
no cheiro do sofá as pessoas que você e eu não somos.
Como
será ter em casa agora um cão que entende de tragédias, nós tão
levianos, acabou o café, o detergente, digo alguma coisa sobre o
sinal da internet, você vai até a sala apertar botõezinhos, o
cachorro move as orelhas na direção das nossas vozes mas o que
dizemos não importa, ele sabe, nunca diremos nada que tenha um
pedaço da magnitude do que ele já viu.
Parado
diante da varanda o nosso cão pode estar tomando um pouco de sol, ou
pode estar vigiando o horizonte, é do horizonte que chegam as piores
catástrofes, de agora em diante ele está atento, não vai acontecer
de novo, ele vai alertar muito antes de a morte quebrar estes vidros
e derrubar as paredes, vai tirar todos nós daqui, nunca mais uma
perna um braço um corpo inteiro destroncado, não tinham explicado
pra ele que donos podiam morrer assim, logo ele tão atento diante do
berço, não fosse aparecer um animal selvagem, um invasor, agora nós
dois temos um cão que entende mais do que pode caber dentro da
cabecinha quente sob o sol da varanda, ele aceita muito grato o meu
carinho que dói porque agora ele sabe que os carinhos acabam e então
todas as coisas têm o tamanho das ausências que carregam.
Um
cão que talvez tenha sido erguido do barro quase sólido, as patas
de trás ainda presas, e quando enfim o olho viu o bombeiro o que ele
entendeu é que nós os seres humanos somos fantásticos, fazemos o
que ele não fez por ninguém, nós salvamos, e é assim que ele vive
em nosso apartamento, amando completamente o que é humano e tão
benevolente, atento à janela de onde pode vir a lama, a televisão
ligada falando dele, dos restos de tudo que era dele, um humano muito
gentil ao microfone lamenta profundamente, o cão na varanda sabendo
tão mais que você e eu – você que sobe agora com café,
detergente, a revista do mês e papel higiêncio –, ele festeja a
sua chegada porque de fato cada retorno é uma sobrevivência,
suspira satisfeito, a sorte que tem, o cão sabendo tanto e ainda
assim os olhinhos de amor, a língua afoita na direção do que é
humano, seres fantásticos.